Uso do Sacramento e Saúde Mental
Este é um ponto de confluência e mesmo de tensão entre dois saberes e dois tipos de abordagem. De um lado temos a tecnologia sagrada que representa o uso religioso do sacramento enteógeno, no contexto ritual. Neste plano, o praticante busca uma cura espiritual que pode ser compreendida como um ato de fé. Ato este que vai reorientar sua vida e reconfigurar o seu complexo mente-corpo-espírito.
Por outro lado, temos o contexto social e cultural onde estas tradições religiosas atuam, com seus mecanismos de controles e contenções, seus critérios de sanidade e patologia, de normalidade e de disfunção que acompanham os valores sociais, culturais e civilizatórios de cada época.
Para as tradições religiosas e os saberes ditos alternativos, sua legitimidade depende, em maior ou menor grau, da sua capacidade de dialogar, se adaptar e compor com esta superestrutura representada pelo saber médico institucionalizado. De certa forma, isto é inevitável e mesmo necessário.
A expansão urbana da Doutrina do Santo Daime acabou por alcançar pessoas, famílias e grupos sociais expostos a todos os tipos de mazelas e pressões da vida moderna nos grande centros urbanos.
Mesmo que a nossa tradição se recuse a toda forma de proselitismo, estamos cientes da grande responsabilidade que significa a demanda crescente de pessoas que recorrem aos nossos centros , principalmente quando se tratam de jovens com problemas de antecedentes de drogas.
Estes cuidados já estavam presentes desde a carta de Princípios assinada pelas entidades religiosas em 1991, que recomendava que não fosse ministrado o sacramento a pessoas com distúrbios psíquicos.
Nossa principal segurança a este respeito sempre foi a adoção das práticas rituais e dos valores espirituais originais de nossa Doutrina. Em grande parte, isto já assegura, nas condições das grande cidades, o atendimento necessário para aqueles que aspiram tão somente um caminho espiritual capaz de produzir transformações significativas em suas vidas e não um experimento lúdico ou mesmo “viagem” descomprometida com estes objetivos de transformação interior.
Inegavelmente neste novo contexto urbano, nossa tradição teve de que se deparar com uma nova ordem de problemas e demandas: drogas, delinquência,menores abandonados, desajustes familiares e outros processos decorrentes da degradação dos padrões de vida e convivência, motivados por complexos fenômenos psico-sócio-econômicos.
Despacho do Santo Daime
Por outro lado, a compreensão deste perigo e da necessidade de aprimorar nossos controles não podem invalidar totalmente o outro lado da questão. Ou seja, a necessidade de praticar a doutrina na sua forma original, pressupõe um espírito genuíno de caridade cristã e verdadeiro sentimento de compaixão. A longa investigação, levada a cabo pelo próprio CONFEN e continuada pelo atual CONAD, em sucessivas comissões de estudo, mostra que a ingestão do Santo Daime dentro do contexto de seu uso ritual não causa transtornos físicos ou psíquicos em seus usuários.
Foi registrado em todas as tradições, significativo numero de casos de abandono do uso de drogas além de outros benefícios que poderíamos sumarizar como “curas espirituais."
O termo cura, que aparece constantemente em nossos hinários e na orientação de nossos trabalhos espirituais, significa um insight interior e uma transformação de atitude, despertando no indivíduo níveis mais elevados de auto estima, controle mental, e interação agregadora para com o próximo.
De qualquer maneira , apesar de tudo isto, não temos como fugir a necessidade dos controles do saber médico e psiquiátrico para permitir o acesso de neófitos em nossos trabalhos. A institucionalização da nossa religião, a aceitação do nosso sacramento e a nossa própria responsabilidade social nos leva a isto.
Acontecimentos mais recentes, como estes do assassinato, em circunstâncias trágicas, dos nossos irmãos Glauco e Raoni Villa Boas, nos impuseram uma reflexão ainda mais profunda sobre o problema. Este fato mostrou que, mesmo com controle de acesso aos participantes dos trabalhos, mesmo assim existe a possibilidade deles serem burlados. O que reforça a necessidade de tomarmos medidas ainda mais exigentes para aprimorar os mecanismos de filtragem e garantir que eles possam ser cumpridos por todas as filiais. Isto pressupõe a preparação e capacitação de pessoal especializado para manejar entrevistas, anamneses e identificar casos suspeitos e problemáticos.
Dentro desta perspectiva, mobilizamos todas as nossas igrejas e núcleos para este debate, no sentido de aprimorar nossos mecanismos de recepção. Também destacamos os procedimentos a serem adotados nos casos de condutas disciplinares irregulares, suspensões, etc.
Mesmo no caso das pessoas consideradas aptas para participarem das nossas cerimônias religiosas regularmente, depois de passar pelas entrevistas e trabalho de apresentação, temos um rígido controle sobre as doses do sacramento que são indicadas para cada tipo de trabalho, dependendo do grau de concentração do mesmo.