Imagina-se que foi com um nó na garganta e um aperto no
coração que aquele homem de trinta e oito anos se despedia para sempre daquelas matas,
do roçado, enfim dos "Torrões", onde se casou e viu nascer os filhos.
Quando
se superam todas as dúvidas e, vem a convicção, a vida começa a se transformar
imediatamente.
Sebastião
vivia a dura labuta do seringueiro, produzindo a borracha que nunca dava de pagar as
contas para o patrão e tirar algum saldo.
Quando
largava a faca de seringa agarrava o terçado ou a enxada e o tempo era para o canavial e
um partido de 6000 pés de macaxeira, que era o forte de sua lavoura.
Não era
homem de ficar em casa alimentando a preguiça. Sempre teve fartura na mesa porque além
de seringueiro e agricultor era também muito bom na caça e na pesca.
Agora,
aquela terra, tantas vezes regada com seu suor, iria ficar para trás. A preocupação era
a mudança para o Acre.
As
atividades finais em casa, na "colocação" conhecida por todos como
"Torrões", era principalmente o aproveitamento da cana para o açúcar e da
macaxeira para o feitio da farinha.
Para o povo
amazonico, a farinha é o principal alimento. O peixe e a carne dão
"sustança", mas só vão bem na sua companhia. E, assim, nunca falta uma
farofa! Na banana se dá uma mordida, e em seguida, com a mão se joga um punhado de
farinha na boca. Assim se comem muitos frutos da floresta como os coquinhos de urucuri,
tucumã e jací. Com água e açúcar preto, se prepara a "jacúba", que acaba
com qualquer sintoma de fome. Os problemas de saúde que requerem uma alimentação mais
leve são resolvidos com "caldo de caridade", que consiste no cozimento da
farinha peneirada com água e praticamente nenhum tempero.
Incontáveis
são as aplicações da macaxeira na dieta. Para o mingau das crianças ela é descascada,
cortada em rodelas bem finas, secas no sol até ficarem crocantes, depois moidas no
pilão, peneirada e, assim, se tem uma massa de otimo sabor.
Sebastião
sempre teve milhares de pés desta abençoada batata. Waldete, seu filho mais velho, com
doze anos, já era um companheiro firme no roçado, na farinhada e na moagem de cana.
Walfredo, um pouco mais novo, assessorava a mãe, carregando água para a cozinha e no
cuidado de Pedrinho (um ano) e de Ivanildo (com quatro). Meninos nesta idade dão um
trabalho medonho e requerem um cuidado contínuo.
Os planos
da viagem que antecediam a partida eram traçados com os poucos detalhes que requeria. A
longa distancia até Cruzeiro do Sul seria dividida em duas etapas, com uma boa parada na
casa de Alzira, irmã de Sebastião já casada, que vivia mais ou menos na metade do
trecho a ser vencido subindo o rio Juruá.
Tinha um
barco "regatão"(comercial) que com certa regularidade fazia a rota de Eurinepé
para Cruzeiro, sempre levava e trazia a correspondência depositada na posta restante do
correio. Uma carta, às vezes, poderia demorar meses para chegar ao destino, mas a
comunicação era por aí, não tinha outro jeito.
Embora não
soubesse ler nem escrever, Sebastião, com a ajuda de um amigo letrado, se comunicara com
a família da mulher (em Rio Branco) e recebera uma resposta positiva.
Os
Gregório estavam ocupando uma nova área de colonização perto de Rio Branco e estavam
reservando um terreno para o assentamento deles.
O que era
vendável, foi negociado: a espingarda, as redes de pesca, a farinha, o açúcar, as
ferramentas de talhar canoa, até velhas dívidas foram cobradas. E, no fim, deu para
apurar perto de oito mil contos de réis (aproximadamente dois mil reais).
O tempo
combinado para a partida se aproximava veloz. Depois da farinha pronta, ele ainda
precisava dar um volta na mata. Era importante um pouco de carne seca nas provisões da
viagem. Um caçador "marupiara"(aquele que tem sorte) trata a caça com cuidado.
Não deixa
os ossos espalhados e só mata por precisão. Em compensação é difícil dar uma
caminhada por perdida.
Com
equipamentos de pesca, farinha, sal, açúcar preto e carne seca, o problema da
alimentação estava resolvido.
Arrumar as
malas é só uma força de expressão, pois na realidade um seringueiro não tem mala nem
bolsa. Tudo é guardado em sacos emborrachados que tem a vantagem de serem impermeáveis e
de fabricação caseira. A bagagem era pouca. Nada supérfluo. Para cada um uma muda de
roupa, uma rede, uma coberta, alguns utensílios de cozinha e só! Num único
"paneiro" (cesto feito de cipó) cabiam todos os pertences familiares. Na hora
da locomoção por terra podia levar tudo nas costas de uma vez.
No tempo do
inverno, isto é, das chuvas e das cheias, é mais fácil sair do Adélia de canoa, pois o
rio Juruá invade as terras baixas e vai lá pertinho. No tempo seco, quando o rio se
limita a seu leito oficial, fica uma distancia de mais ou menos cinco horas até a margem.
Outra alternativa para chegar até o rio, é descer pelo igarapé que vem da "terra
firme" (terras mais altas) e passa pelos "Torrões", bem perto da morada. O
igarapé é estreito, tem muita curva, alguns "balseiros" (vegetação nas
margens do rio) mas dá de se navegar em uma canoa média. Com sete horas de manobras e
bons remos, se chega no rio.
Um
seringueiro tem por hábito acordar ainda na madrugada e assistir o amanhecer do dia em
franca atividade. Assim, naquela radiosa manhã de sol do mês de agosto, os retirantes
iniciaram a jornada em busca de uma nova terra. Uma alegria interior irradiava em todos
pois era com fé e esperança que iriam enfrentar os desconfortos de um longa
peregrinação em rumo do poente.
Cenas
iguais a esta se repetem com frequência em todos aqueles seringais e nem sempre com um
final feliz. Incontáveis são as famílias que se degradaram migrando para os arredores
das cidades.
Pela falta
de melhores oportunidades os jovens se enveredam pelos caminhos da ilusão, com bebidas,
drogas, prostituição que terminam envolvidos em roubos, crimes e marginalidade.
Sebastião
era homem religioso. Em sua vivência com o sogro, seu Idalino, ouvira as melhores
mensagens do Evangelho. Com o Mestre Oswaldo aprendera a trabalhar na fé do espiritismo
Kardecista. Com seu dom mediúnico de curador já tinha ajudado muita gente.
Ele não
era um simples retirante em busca de melhores condições materiais. Era o desenvolvimento
e o crescimento de seu universo espiritual que o impulsionava naquela viagem. Tinha toda a
fé na proteção divina e a certeza de estar cumprindo uma missão recebida.
Imagina-se
que foi com um nó na garganta e um aperto no coração que aquele homem de trinta e oito
anos se despedia para sempre daquelas matas, do roçado, enfim dos "Torrões",
onde se casou e viu nascer os filhos.
A canoa
deslizou suavemente no rumo do Juruá. O silêncio era quebrado apenas pelo compasso dos
remos batendo na água, mas logo depois da primeira curva, a animação tomou conta dos
meninos que de imediato foram repreendidos pela mãe.
Sem grandes
novidades fizeram a rota do igarapé. De notável só as pescarias do Waldete. Depois da
terceira hora de viagem pararam em uma sombra para o lanche. O menino fez uma massinha
dura de farinha, iscou no "anzolim " e rapidamente fisgou uma "piaba
", que se transformou em nova isca, desta vez para um anzol maior. Depois de
lançada a linhada, em poucos minutos um tucunaré de um quilo e meio deu uma solapada na
linha, sendo arrastado imediatamente. Não deu tempo para outro lance, porque ainda
faltava muitas horas para o local da dormida. E tocaram para frente.
Quando o
igarapé desaguou no Juruá, os horizontes se abriram. O rio largo margeado por praias de
areia fina e barrancos era outra paisagem, aumentando em todos a sensação de estar fora
de casa.
Não foi
mencionado ainda mais um equipamento, importante para subir a correnteza: era um rolo de
corda de quase cem metros, que há muito fazia parte dos seus pertences de trabalho. Este
material era muito útil em diversas oportunidades.
A canoa
logo foi encostando na praia e Sebastião anunciou que seguiriam a viagem "puxando na
cisga". Amarrou a corda no bico de proa e saiu puxando a canoa andando pela praia. Os
dois meninos maiores ajudavam na operação. Literalmente, passo a passo, ia vencendo a
jornada. Nas curvas do rio, ou quando a praia morria no barranco, todos pulavam dentro da
canoa. E aí era a vez do remo.
Um pouco
antes das cinco horas da tarde, pararam em uma casa para o pernoite. Era de gente
conhecida pois ainda não estavam muito distantes do seringal. Embora estivesse cansado
Sebastião não recusou o convite para uma pescaria. Ali também sabiam que ele era um
curador e uma criança logo foi trazida para ser rezada.
A viagem
durou muitos e muitos dias. Nem se sabe precisar exatamente quantos. Talvez um mês só no
rio, e outro na casa da Alzira, refazendo as energias, descansando do enfado da viagem.
Rita estava grávida pela quinta vez.
O rio tinha
praias que se perdiam de vista. Os três que puxavam a "cisga" agarravam na
ponta da grande corda, a canoa ficava distante e Rita sentia solidão naquelas horas
intermináveis. Às vezes um sentimento de temor pelo futuro de todos. Ela rezava e se
confortava nas curvas do rio quando estavam todos reunidos, remando na travessia.
Um dia,
finalmente, a cidade de Cruzeiro do Sul descortinou-se no cenário da viagem.
Tinham o
endereço de um primo que logo foi localizado. Parente é muito bom, principalmente numa
situação como aquela.
O meio de
transporte, agora, era uma carona num avião da FAB (Força Aérea Brasileira) que
quinzenalmente fazia a rota de Manaus para Rio Branco, passando por Cruzeiro do Sul. O
irmão mais velho de Rita, Francisco Gregório, aquele que no tempo da migração familiar
não foi para o Juruá, tinha se engajado no Exército em Rio Branco e a esta altura
envergava a patente de terceiro-sargento. Com seu prestígio militar, havia inscrito na
lista de passageiros da FAB Sebastião e sua família.
Mais uma
semana na cidade e finalmente mais um momento de grande emoção: a primeira viagem aérea
é sempre precedida por uma certa ansiedade. Ela era enfim o rompimento do cordão que os
ligava àquela área do rio Juruá. Era o voo da conquista de uma nova era para a
família.
E lá foram
eles levados pelas asas do barulhento bimotor para o desfecho desta inesquecível jornada.
Obs: Até o ano de 1944, os relatos são narrativas. A partir desta data os relatos
serão baseados em depoimentos de contemporâneos.
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