|
|
História de Um Homem
da Floresta
Estamos disponibilizando aqui o relato de Lúcio Mortimer sobre a
vida do nosso Padrinho Sebastião Mota de Melo.
Capítulo 3 - 1ª Parte
O Casamento
|
Um tempo
passado já bem distante. Um tempo em que o vigor da juventude conforta as lembranças
mais duras de um período de muitas provas.
No seringal
Adélia todo imigrante nordestino era chamado de "arigó". Este termo pejorativo
significava "aquele que não sabe nada da Floresta".
Arigozinho
esperto era o "Nel". Gostava de estar entre os nativos, ouvir casos de caçada e
prestava toda a atenção quando o assunto era nome de madeiras para as diversas partes da
casa: esteio de intaúba, quari-quari ou canelão que duram enfiados na terra. As linhas
podem ser de macucú, louro ou envieira, madeiras que não se acabam estando ao abrigo do
tempo.
Um dia, já
entrosados com os veteranos, levou o "Bastião Mota" para visitar sua casa, sem
nem saber que o mesmo já tinha botado os olhos em cima de sua irmã, Rita.
O convidado
fez tudo para agradar a todos. Conversava com muito desembaraço, parecia até um velho
amigo da família.
Foi aí que
Rita se encantou. Até aquela data tinha uma "cisma" com os amazonenses. Ela os
achava grosseiros e sem graça, mas o filho do vizinho Manuel Mota, era diferente.
Naquele dia
Sebastião saiu cheio de esperança. Não tivera a oportunidade de se declarar apaixonado,
mas na hora que os olhares se encontraram, sentiu o primeiro momento de um amor que nunca
mais acabaria.
Rita
também ficou tocada, mas procurou não dar demonstração para os familiares. É
inegável que ficou mais curiosa a respeito do companheiro de trabalho do irmão, e fazia
perguntas "jogando verde para colher maduro".
Naturalmente
o namoro aconteceu. Mais uma visita e no momento certo, de uma ocasião a sós, o pedido
se formalizou.
Daí para
frene se sabe: muito enlevo, muitas juras de amor, algumas pequenas cenas de ciúmes, tudo
isto que faz parte de um tempo de namoro. O futuro sogro, "seu" Idalino, era
homem de respeito. Pessoa muito religiosa. Sebastião tinha curiosidade com a religião e
escutava com prazer as explicações bíblicas passadas por ele.
"Dona"
Maria, a sogra, não lhe poupava atenção. Com todo carinho servia o café e outros
agrados, deixando-o bem à vontade.
Ao
anoitecer, reunia-se a família para as preces da tarde. Desde o Rio Grande do Norte eram
crentes. O pai Idalino tinha uma boa voz e sabia muitos hinos que cantava neste ritual
caseiro. O namoro era depois da oração. O eleito de Rita caiu nas graças de toda a
família Gregório.
Passado um
ano começaram a pensar mais seriamente no casamento.
A vida de
seringueiro é muito simples: não precisava comprar casa nem móveis. Se na
"colocação" de seringa não houver moradia, o negócio é ir na Floresta,
tirar os barrotes, esteios, linhas, caibros, cobertura de palha, paredes e assoalho de
paxiúba. Dois homens em pouco mais de uma semana fazem um boa barraca de oito metros de
comprimento por quatro de largura. A mobília era no máximo uma mesa rústica na cozinha
e alguns bancos. Uma boa rede e mosquiteiro e a casa está completa.
Tudo foi
sendo providenciado de acordo.
Uma vez por
ano, no tempo dos rios cheios, provavelmente no mês de abril, acontecia a chamada
"desobriga". Saía o padre na cidade de Eurinepé e ia em peregrinação de
seringal em seringal até chegar ao município de Cruzeiro do Sul. Nas diversas paradas
aconteciam missas, confissões, batizados e casamentos.
Foi neste
"dia do padre" no seringal Adélia, no ano de 1946, que Sebastião e Rita
selaram seu compromisso de viverem juntos para formar uma nova família.
Ela estava
muito bonita, irradiando o frescor dos vinte anos, vestida de branco e na mão um buquê
de flores que é o símbolo da esperança de um vida alegre. Ele também caprichou
estreando uma camisa de manga comprida e um novo par de botas. Na época tinha vinte e
seis anos.
A mesma
cerimônia foi compartilhada por mais três casais. Raimundo e Francisco Mota e um outro
arigó. Os quatro foram abençoados de uma só vez e num só dia o velho Manuel Mota casou
três filhos. Se fôsse casamento de gente rica haveria muitos festejos e uma longa
lua-de-mel. Mas a realidade não era esta. Logo em seguida os nubentes fizeram uma viagem
de dois dias a pé para chegarem na "colocação" de seringa onde Sebastião
trabalharia.
O ano de
1946 não foi bom para os seringais. O preço da borracha despencou. O fim da Segunda
Guerra Mundial restabeleceu o equilíbrio do mercado e a produção da Ásia voltou a
bater na nativa, jogando os lucros para baixo. Os seringais voltaram ao processo gradual
de decadência.
Para dar
conta de uma família e ter um pequeno "saldo" era preciso uma jornada de
trabalho extenuante. Sebastião e Chico Mota casados no mesmo dia foram juntos para a
distante "colocação" onde enfrentariam os desafios da nova vida. O seringueiro
começa sua atividade às quatro da madrugada e às vezes entra pela noite pois além do
corte e da "colha" da seringa tem que defumar o látex para fazer as bolas de
borracha, conhecidas por "pelas". As sobras do dia são usadas para cuidar do
roçado, pescar e caçar.
O homem
passava o dia fora de casa. A mulhar tinha muitas tarefas caseiras mas sempre que podia
ajudava no roçado e nas pescarias.
A vida era
dura, mas a Floresta com seus primores confortava. O "igarapezinho" de águas
claras, a alegria dos pássaros, o multicolorido das borboletas, tudo inspirava e
completava o amor do jovem casal.
Agora
Sebastião estava com os ânimos redobrados e não se poupava. Precisava produzir muitas
"pelas". de borracha. Dentro de mais algum tempo nasceria o primeiro filho.
Para Rita,
o ato de esperar preenchia todos os seus momentos. Tudo era para ele: o repouso, a
alimentação, costurar as roupinhas e até o cuidado de criar uma ninhada de pintos para
ter os franguinhos de primeira pena na dieta do resguardo.
O dia
chegou, era sete de dezembro de 1947. Tudo estava providenciado. Com o apoio da carinhosa
mãe e da velha e experiente parteira, nasceu um menino. Para ele, que era tão especial,
um nome diferente, raro e com muita sonoridade: Valdete, cidadão brasileiro, amazonense
do Vale do Juruá.
Seguiram-se
os quarenta dias do resguardo, cumpridos à risca. Alimentação leve e repouso. Nada de
carne de caça "reimosa" como paca, tatu, anta, veado roxo, etc. Permitido só o
veado capoeira e alguma "embiara" (da família das nambús). O cuidado também
se estendia aos peixes, evitados todos os de couro como o pirarucu, surubim, malpará,
etc., só os de escama e demais detalhes.
Deus tem os
seus desígnios. Veio o segundo, João Batista, que faleceu em seguida. Enquanto isso,
Valdete andou, falou e quando já corria pela casa veio o terceiro filho. O nome escolhido
foi Valfredo. Mas quando se fez o registro, o escrivão achou que havia um
"V" sobrando e simplificou para Alfredo.
Duas
crianças e mais dificuldade pela frente. O preço da borracha teve nova recaída e a vida
no seringal estava quase impraticável: muito trabalho, pouco dinheiro e uma carestia
medonha.
Comentários
se ouviam dando conta de mais facilidades no Acre. Um dia chegou a notícia que os
seringais em volta de Rio Branco estavam sendo repartidos em pequenas glebas, dando
oportunidade de assentamento para muitos colonos.
A família
Gregório, quando saiu do Rio Grande do Norte planejava ir direto para o Acre. Porém a
viagem se tornou uma verdadeira epopéia. Durante mais de um mês centenas de pessoas se
apertaram dentro de um navio de guerra. Quando a noite chegava era severa a proibição de
produzir qualquer faísca. Todos calados e no escuro, a qualquer momento poderia aparecer
um submarino inimigo para bombardear os soldados da borracha. Os nordestinos viajavam com
grande desconforto e apreensivos.
O filho
caçula de Idalino, João Batista, de sete anos, quando saiu de casa estava magro mas
tinha saúde. A precariedade da viagem o atingiu de cheio. O menino adoeceu do fígado,
perdeu o apetite, ficou pálido, o que botasse no estômago logo "provocava".
Muito sofrimento e apreensão para toda a família.
Quando
finalmente chegou em Manaus, local da troca de embarcação, o menino não resistiu mais.
Faleceu no exato dia da viagem para o Acre. Não teve jeito, a família ficou e só
Francisco, o mais velho dos homens, seguiu.
Foi neste
momento que apareceu Adílio Maciel, filho do dono do seringal Adélia, que convidou
Idalino e seu grupo a mudarem a rota para o Juruá, pois a saída de outro barco para o
Acre iria demorar mais de mês. Antônio que era filho do primeiro casamento de Idalino,
resolveu ficar em Manaus, e nunca mais tiveram notícias dele.
Passados
mais de cinco anos no Juruá, resolveram retomar viagem no rumo do Acre depois de
receberem a carte de Francisco animando-os para a empreitada. Todos se foram, menos Rita
que agora era Gregório de Melo, pois Sebastião, amazonense nato, esperava mais de sua
terra.
Este foi o
tempo mais difícil para o casal. Passaram-se os encantos. Ele se tornara impaciente,
vendo tanta luta e pouco resultado. Sempre fora muito sincero, incapaz de esconder os
sentimentos. Agora andava mal-humorado.
Ela mesmo
saudosa dos parentes tinha muito o que se ocupar com os filhos e estava sempre
recomendando calma e paciência.
Como a
natureza é pródiga, nasceu mais um filho. Batizado como Ivanildo.
Problemas.
Dificuldades, insatisfação era agora o quadro familiar. "Dona" Vicença, mãe
de Sebastião, também vivia um tempo duro, assolada por problemas psíquicos atribuídos
à sua forte mediunidade não trabalhada.
Foi neste
clima apreensivo que chegou a notícia de um curador. Tratava-se de Mestre Oswaldo, que
vivia a alguns dias dali. Dizia-se que o homem era poderoso pois trabalhava muito bem na
linha espírita, tendo curado muita gente. Esta notícia deixou Sebastião edificado. Só
de ouvir falar do homem sentiu os cabelos arrepiarem, na mesma hora decidiu procurá-lo.
Combinou com a mulher e o irmão Chico, se informou dos detalhes e partiu nesta busca.
Nos
seringais, remédios alopáticos eram raros. De médicos nem se falava. Os males do corpo
se resolviam com os rezadores e as ervas. Problemas psíquicos só em trabalhos de banca
espírita, o que era bem raro naquelas bandas.
A viagem
durou quatro dias, vencidos no remo. Mas finalmente se chegou ao porto destinado. Ao subir
o barranco, via-se que ali morava um homem de verdade pois era admirável o zelo e a
limpeza do terreiro, com canteiros de flores e bancos bem colocados, permitindo um belo
visual do rio.
"Está
muito bom!" foi a resposta, "já esperava por ti, seja muito bem vindo. Acabe de
chegar, você merece um repouso, a casa é sua!"
Mestre
Oswaldo tinha uns sessenta anos, estatura média, magro e de pele bem escura. Era paulista
de origem e não se sabe como foi parar naquelas alturas do Juruá. Corria o ano de 1955.
Existem
momentos na vida de uma pessoa que são decisivos e inesquecíveis. Às vezes um simples
encontro pode trazer grandes transformações.
Quando um
discípulo encontra seu mestre se cria uma corrente de amor. Um tem a alegria de ensinar e
o outro a de aprender. Assim aconteceu e estes dois homens tiveram uma grande interação.
Oswaldo era
completamente dedicado ao trabalho de caridade cristã. Recebia doentes, rezava e
receitava ervas. Em certas ocasiões especiais com alguns outros médiuns vizinhos que ele
havia preparado fazia trabalhos de mesa branca onde espíritos de médicos e outros eram
chamados para resolver os casos mais difíceis. Sua casa era muito frequentada.
Sebastião
desde criança tinha uma grande busca espiritual. Tinha sonhos revelatórios e algumas
visões estranhas quando solitário andava pelas matas. Nos últimos anos o vazio
espiritual lhe acarretava dúvidas, angústicas e sofrimentos.
Tinha
realizado o sonho de um bom casamento com filhos mas isto não era mais suficiente. Queria
muito mais e nem sabia direito o que era.
Mestre
Oswaldo detectou logo a fonte de tantos problemas. "Você é um médium. Precisa
trabalhar e desenvolver este dom. Eu posso ver muito mais e por isso lhe garando: você
tem uma missão e veio ter comigo não foi por acaso. Eu lhe ensinarei muitas coisas e
você vai além de mim, se Deus quiser!"
Passados
mais uns dias, em que os dois se empenharam em deixar todo o serviço da colônia
adiantado, tomaram o rumo do seringal Adélia para atender "dona" Vicença que
foi o motivo da viagem.
A chegada
do curador atraiu muita gente da vizinhança, principalmente depois do "trabalho de
mesa" em que a dita senhora teve um grande alívio em seu padecer.
Desde este
tempo a casa de Sebastião e Rita não parou mais de receber gente doente, principalmente
crianças e recém-nascidos. Na tenra idade, estão sujeitos à influências de olhares de
certas pessoas, que mesmo involuntariamente colocam "quebrante", isto é,
entristecem o inocente que passa a ter crises anormais de choro, falta de apetite, dor de
barriga, etc. "Quebrante" é mal que só se cura com rezas.
Durante a
permanência de Oswaldo, a dedicação ao aprendizado na arte de curar foi total. Mesmo
trabalhando no "roçado" a cabeça estava ocupada e surgiam as perguntas
relativas ao espiritismo, aos rituais, etc. Já que tinha este dom divino, era preciso
caprichar para ser cada vez mais merecedor, pensava "Bastião".
Desde este
tempo mestre e discípulo se revezavam nas visitas.
Com mais
algum preparo, Sebastião passou a incorporar o espírito do médico, já desencarnado,
Dr. Bezerra de Menezes e do Prof. Antônio Jorge. A qualidade de seu trabalho de cura
ganhou maiores dimensões, podendo ajudar mais gente.
Nesta
missão não se conta com dinheiro. O dom é dado de graça e de graça ele recebia,
hospedava e alimentava quem batesse a sua porta. A mesa era farta. Aquele homem antes
atribulado, havia cedido lugar a um empenhado curador. O bom astral voltou a reinar e Deus
premiou o casal com mais um filho: Pedro Mota. Era o décimo primeiro ano de casamento. O
padrinho de batismo foi o querido Mestre Oswaldo. Ele ficou muito feliz com a deferência
e disse que o menino era seu também e que sempre olharia e rezaria pelo mesmo.
Quando um
discípulo aprende a caminhar com seus próprios pés é hora de iniciar sua missão
propriamente dita. Um dia, o agora compadre Oswaldo, circunspecto e solene chamou
Sebastião para mais algumas instruções. Nesta ocasião anunciou-lhe que era chegado o
tempo de alçar vôo.
Como diz o
ditado: "Santo de casa não faz milagre!", Sebastião nunca havia saído da
área do Juruá. "Vá para o Acre, lá descobrirá muito mais coisas pois a vida
está pulsando mais forte naquelas bandas!"
Que
notícia auspiciosa para Rita! Finalmente iria rever os pais, irmãos e os novos
sobrinhos. O seringal não oferecia mais perspectivas de progresso para uma nova família.
Já eram quatro meninos que mereciam uma vida melhor. Pelo menos estar mais próximos da
cidade, com mais recursos.
Sem pressa,
resolvendo as pendências, ajuntando o dinheiro possível, começaram os preparativos para
a viagem.
Era preciso
uma nova canoa para vencer o Juruá até a cidade de Cruzeiro do Sul, pois a velha já
"fazia um pouco de água". Também era vantagem ter uma canoa para ser negociada
no final da viagem.
Sebastião
foi para a mata, escolheu uma "intaúba" bem grossa e madura. Meteu o machado e
com quinze dias de muito suor derrubou, cavou, talhou, queimou e abriu com perfeição uma
nova canoa. Colocou quilha, obras bem feitas de proa a popa, e bancos largos. Entalhou
mais dois remos e ela ficou lá no porto balançando ao sabor das águas esperando o dia
da partida...
|
|