Considerações
Legais para a Absolvição
A Corte considera o seguinte:
De acordo com o artigo 9,
parágrafo 2 da Convenção Européia em Direitos Humanos e
Liberdades Fundamentais, a liberdade de religião não poder
ter limites outros que os descritos na lei, que são necessários
ao interesse da segurança pública, a proteção da ordem pública,
saúde e moral, ou a proteção dos direitos e liberdades de
terceiros.
A acusada foi detida em
um lugar que de, acordo com o relatório da polícia, era
aparentemente uma igreja. Neste local a polícia constatou
um altar onde duas pessoas estavam servindo de garrafas
um líquido marrom em pequenos copos às pessoas que esperavam
em fila.
De acordo com o relatório
do policial especialista R. Jellema, em 15 de outubro de
1999, 17,5 litros deste líquido continham 3-4 gramas de
DMT, também conhecido como dimetiltriptamina, uma substância
mencionada na lista 1, sub C da Lei de Drogas holandesa
(Opium Act).
No já mencionado relatório
do antropólogo Macrae está descrito que a religião do Santo
Daime originou-se por volta de 1920 no Brasil, apresentando
influências indígenas e africanas combinadas com valores
e conceitos cristãos. Novos rituais foram adicionados aos
velho costume da ingestão de Ayahuasca. De acordo com os
estatutos de fundação da igreja Ceflu Cristi - Céu da Santa
Maria, da qual a acusada é uma das fundadoras, a Igreja
tem como propósito a prática e a reflexão sobre a doutrina
do Santo Daime. A Igreja é afiliada ao Centro Eclético da
Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra - CEFLURIS,
que é sediado na Vila Céu do Mapiá - Amazonas, Brasil. O
propósito da Igreja holandesa é baseado no propósito do
Cefluris, que pode ser descrito como "o estudo, a pesquisa
e a prática da doutrina do Santo Daime, avivando nos seres
humanos, através de seus rituais, a centelha divina orientada
para a integração com o divino".
O especialista historiador
Snelders concluiu em seu já mencionado relatório que o uso
de substâncias psicoativas, especialmente alucinógenos,
são elemento essencial de muitas culturas pré-industriais.
Este costume existe também em religiões sincréticas que
tem se originado a partir do século 19, e que combina o
uso tradicional com sistemas de crenças cristãos. A Igreja
do Santo Daime pode ser situada neste mesmo contexto de
uso de substâncias psicoativas.
O especialista em religiões
Kranengorg declarou em seu já citado relatório que do ponto
de vista da fenomenologia das religiões, a combinação de
substancias expansoras da consciência com os rituais é importante
para muitas religiões. O uso de enteógenos sempre acontece
em contextos rituais. Ayahuasca é um dos mais usados enteógenos,
e o fato da Igreja do Santo Daime ter optado por usar esta
substância como método para a experiência religiosa torna-a
essencial para a contato com o sagrado e a prática de adoração
específica deste culto, podendo se afirmar que a Igreja
do Santo Daime não pode existir sem esta substância.
Com base nestes relatórios
de especialistas, a corte chega à conclusão que o centro
de Amsterdã (Ceflu Cristi - Céu da Santa Maria) efetivamente
deve ser considerado como uma Igreja. A doutrina deve ser
considerada como uma crença religiosa, e o uso do chá Ayahuasca,
também chamado Daime, sendo o mais importante sacramento
dentro da Igreja do Santo Daime, deve ser considerado parte
essencial da experiência religiosa de seus membros. A acusada
declarou em juízo que a Igreja do Santo Daime deu-lhe apoio
e força, e que Ayahuasca é usada como sacramento juntamente
com o bailado e o canto dos hinos. A convicção da acusada
deve, com base nisso, ser considerada religiosa. Esta convicção,
e também a prática religiosa através da qual esta convicção
se expressa, estão sob a proteção do artigo 9 da Convenção
Européia em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais.
De acordo com a Convenção
em Substâncias Psicotrópicas, e o artigo 2 da Lei de Drogas
holandesa (Opium Act), o DMT é uma substância proibida.
O promotor público argumentou que a limitação dos direitos
de liberdade religiosa dos acusados seria justificado por
razões de saúde pública. O promotor não mencionou a violação
de outros itens citados no artigo 9 como ordem pública,
segurança pública, moral e costumes, ou a proteção dos direitos
e liberdades de terceiros. Apesar de haver neste caso uma
proibição por lei, no interesse de um objetivo legítimo,
mencionado no artigo 9 da Convenção (saúde pública), a corte
não pode declarar que a Lei de Drogas serve a este objetivo
legítimo, mas deve, de acordo com a jurisprudência da Corte
Européia para Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais,
regular concretamente se nesse caso razões de saúde pública
justificam uma limitação da liberdade religiosa.
O especialista Prof. De
Wolff descreve em seu relatório (escrito sob demanda do
Juiz de Instrução) como efeitos indesejáveis de natureza
suave como náusea; e também sintomas mais sérios de intoxicação
podem ser registrados por exemplo na forma de pressão alta
ou aumento da taxa cardíaca. Também é citada a impropriedade
da interação entre Ayahuasca e certos tipos de remédios
ou alimentos. Sua opinião é que, a lista de questões fornecida
aos participantes dos rituais, investigando as condições
de saúde dos participantes individuais, e as informações
sobre contra-indicações para o uso da Ayahuasca oferece
uma apresentação completa confiável sobre os possíveis riscos.
O contexto religioso implica, segundo o especialista, que
a produção da Ayahusca e o seu uso durante os rituais seja
estritamente controlado. Além do mais, o consumo está diretamente
relacionado aos rituais, e acontece sempre na presença de
pessoas que têm familiaridade com os efeitos.
Com base nesses relatórios,
os especialistas concluem que o uso da Ayahuasca pode ser
arriscado para a saúde em casos individuais. Mas a informação
fornecida pela Igreja do Santo Daime é, em geral, correta
e suficiente. A disponibilidade limitada da Ayahuasca, e
as circunstâncias estritamente reguladas nas quais é utilizada
formam uma proteção contra qualquer tipo de abuso. Em vista
disso, e do limitado número de adeptos, a conclusão do relatório
é de que de acordo com os conhecimentos científicos da atualidade,
é pouco provável que o uso da Ayahuasca se constitua em
perigo para a saúde pública. De Wolff declarou à corte em
relação à combinação Ayahuasca / Cannabis que a ausência
de estudos científicos sobre os efeitos combinados destas
duas substâncias não lhe dá motivos para mudar sua conclusão
positiva em relação à Igreja do Santo Daime.
De acordo com o relatório
de De Wolff, a corte conclui que ingerir a Ayahuasca dentro
do contexto religioso da Igreja do Santo Daime não representa
um significativo risco para a saúde pública. Apesar de,
em alguns casos, o DMT e o chá do Daime poderem significar
riscos para a saúde, as informações fornecidas e o uso controlado
dentro do contexto da comunidade religiosa, apresentam na
opinião da corte uma garantia suficiente contra riscos de
saúde inaceitáveis, e nestes casos o uso do chá deve ser
desaconselhado.
As garantias contra o abuso
da substância fornecidas pelo contexto religioso mencionadas
por De Wolff foram também confirmadas nos relatórios de
Kranenborg e Snelders.
Também o promotor público
não forneceu nenhum fato concreto ou circunstância que pudesse
servir de base para demonstrar qualquer risco que o uso
da Ayahuasca pudesse trazer para a saúde pública.
Em vista de tudo isso, a
corte chega a conclusão de que no caso da acusada, a proibição
determinada pela Convenção e pela Lei para a posse e distribuição
de DMT, em função da qual ela não pode receber, durante
os rituais, o mais importante sacramento de sua convicção
religiosa, caracteriza-se como uma real interferência em
sua liberdade de religião. Esta interferência não pode ser
vista como necessária em uma sociedade democrática.
Neste caso, deve ser buscado
o equilíbrio entre o interesse da acusada de que não seja
efetuada uma interferência em seu direito de liberdade religiosa
garantido pela Convenção Européia de Direitos Humanos, e
o interesse do estado em cumprir suas obrigações relativas
ao Tratado de Substâncias Psicotrópicas de proibir o DMT.
Em virtude da grande importância a ser imputada à liberdade
religiosa, e das circunstâncias que permitem que o uso ritual
da Ayahuasca não resulte em significativo risco para a saúde
pública, a corte considera que, neste caso, a proteção da
liberdade religiosa tem que ter um peso maior. Isto significa
que, neste caso, o artigo 2 da Lei de Drogas (Opium Act)
perde sua força.
Em vista disso, fica provado
não haver qualquer fato criminoso perante a lei.