Publicado originalmente
em oestadodoacre.com.br
Por
Flaviano Schneider
Com
a decisão da Audiência Nacional em agosto, em
Madri, e renúncia do promotor ao recurso no Tribunal
Supremo, a Espanha tornou-se o segundo país da Comunidade
Européia a legalizar o direito aos daimistas de praticarem
sua religião, inclusive com o direito de consagrar
a bebida sagrada Santo Daime. O fato se deu depois de uma
batalha judicial que durou cerca de dois anos.
A
Doutrina do Santo Daime expandiu-se por vários países
da Europa nos anos 90, do século passado e o primeiro
país a legalizá-la no continente foi a Holanda,
depois de decisão do Tribunal do Distrito de Amsterdam,
em 21 de maio de 2001.
Existem
quatro núcleos da Igreja do Santo Daime na Espanha.
Segundo o dirigente da igreja de Madri e presidente da federação
de igrejas daimistas, jornalista Juan de La Cal, a liberdade
na Holanda e Espanha não supõe nenhuma garantia
de impunidade no resto dos países da comunidade européia,
porque cada um tem a sua própria legislação.
-É
bom, para o futuro, ressalva, porque dentro de poucos anos
está prevista a unificação de todos os
códigos legais em um só. E Espanha e Holanda
são dois países de peso dentro da organização.
Também, conforme se argumentou na sentença holandesa,
as questões religiosas estão protegidas por
um código transnacional de Direitos Humanos e Religiosos,
amparado pelo Tribunal de Estrasburgo, que não vincula
os países a um acordo, mas tem um valor específico.
Este é um dos recursos onde estão recorrendo
(ou devem recorrer) as vítimas dos outros países.
Já
existem núcleos de Santo Daime por toda a Europa, todos
tentando legalização. Na Alemanha, depois de
um período de constrangimentos, os ventos começam
a soprar favoravelmente e na Itália, embora ainda não
seja legalizado oficialmente, os trabalhos seguem normais
e os italianos buscam clarear seus direitos perante a legislação
do país.
Segundo
Juan, o caso da França é especialmente preocupante.
-Aquele
é um país - conta - que se presume haver inventado
o racionalismo e cuja revolução acabou com os
privilégios dos monarcas e clero. Por isso, tem uma
obsessão com tudo o que pareça uma seita ou
religião. Agora mesmo estão fazendo uma perseguição
contra a Ayahuasca, que querem incluir na lista de substâncias
proibidas. Até há pouco tempo, os daimistas
processados não tinhan permissão para falar
entre si, apesar de estarem em liberdade, nem para reunir-se.
Acho que neste momento a coisa lá está difícil.
Na
Holanda, a Igreja está legalizada desde 2001 e na Espanha,
com a inscrição no Departamento de Assuntos
Religiosos do Ministério da Justiça, estão
reconhecidos pelo Governo Espanhol, com direito ao sacramento
, o vinho do Santo Daime e, ademais - ajunta Juan -
o governo tem a obrigação de proteger nossos
direitos.
São
cerca de 100 fardados, nome que no linguajar daimista
significa aquele que é membro efetivo da irmandade
espalhados pelos núcleos de Madri, Catalunha, Andaluzia
e Baleares.
Conta
Juan, que cada vez mais aparecem pessoas novas em busca do
Santo Daime. Sobretudo agora - narra Juan - que passou
a pressão judicialque nos manteve dois anos com as
portas quase fechadas e quase um ano sem tomar Daime.
Merece citação que, embora os espanhóis
não tivessem o Daime, os trabalhos com o cântico
dos hinários prosseguiram, sem o uso da bebida.
Origem
O
Santo Daime chegou à Espanha em 1987 levado pelo jornalista
hippie espanhol Francisco de La Cal Ovejero. Paco,
como ficou conhecido entre os daimistas, hoje mora no interior
da Espanha e é pequeno produtor rural. Em sua perambulação
pelo planeta, ele veio a Rio Branco, conheceu o padrinho Sebastião
Mota de Melo e morou por vários anos na Colônia
Cinco Mil e Céu do Mapiá, ao mesmo tempo em
que se dedicava a escrever matérias para revistas espanholas.
Em
1988, seu irmão Juan, atual dirigente da igreja de
Madri, e repórter do jornal El Mundo, visitou
pela primeira vez o Céu do Mapiá e ainda chegou
a conhecer o padrinho Sebastião que viria a desencarnar
em 1990. Na década de 90, a expansão da doutrina
na Europa acelerou-se com o intercâmbio entre os daimistas
dos dois países e com as visitas do atual líder
daimista, padrinho Alfredo Gregório de Melo, filho
de Sebastião Mota de Melo. A Igreja de Madri já
tem seis anos e costuma juntar cerca de 100 pessoas nos trabalhos
grandes (hinários). Juan destaca que quando o padrinho
Alfredo vai à Espanha aparece o dobro de pessoas nos
trabalhos e só não vão mais porque não
cabe no recinto.
A legalização
Até
o final do século XX, a igreja daimista espanhola funcionou
sem amparo legal, mas seus membros esperavam que em algum
momento as autoridades iriam interferir, como já haviam
feito em outros países do continente e eles teriam
que entrar em processo de regularização. Mas,
jamais esperavam que as coisas aconteceriam como aconteceu.
Em
5 de abril de 2000, dois daimistas, moradores no Céu
do Mapiá, Fernando Ribeiro de Souza e Francisco Corrente
(Chico Corrente) estavam de passagem por Madri, com destino
ao Japão, onde tentavam abrir mercado para produtos
amazônicos como óleos vegetais de copaíba,
andiroba, castanha, amostras de cacau, shampoos, sabonetes,
artesanato e, junto, 5 litros de Daime que seriam utilizados
em trabalhos no Exterior. Foram presos ainda no aeroporto
e passaram 51 dias na cadeia. Em seguida, a polícia
espanhola desfechou ação contra a igreja do
Daime tendo sido processados 6 membros. Na operação
montada pela polícia, cerca de 60 policiais entraram
na igreja em Mêntrida (Madri), com cachorro, revirando
tudo e ainda foram enviados 6 policiais a cada residência
de fardado.
O
laudo de acusação era pesado: tráfico
internacional de drogas, crime contra a saúde pública
pela introdução de substância nociva na
Espanha e participação em associação
ilícita (tipo formação de quadrilha)
que poderia dar mais de 12 anos de prisão. Os dois
brasileiros foram levados para um centro penitenciário.
Os espanhóis foram soltos sob fiança porque
tinham endereço fixo. O fato gerou repercussão
muito grande em vários países, principalmente
no Brasil.
Para
os membros daimistas da Espanha foi um choque. Até
aquele momento a sociedade e mesmo os amigos e membros das
famílias dos daimistas não sabiam exatamente
de que movimento eles participavam e o caso veio à
tona como um assunto policial. Muitos se assustaram, foi o
momento de assumir a história.
O
caso teve repercussão mundial e a igreja espanhola
e os dois brasileiros presos começaram a receber apoio
de dezenas de países.
No
Brasil, os senadores Marina Silva e Tião Viana visitaram
o embaixador espanhol, Cesar Alba, explicando que o Santo
Daime era religião reconhecida no Brasil tendo, inclusive,
formalizado um documento em nome do parlamento brasileiro
com referências positivas sobre as religiões
que usam a Ayahuasca e que os dois brasileiros não
poderiam ser confundidos com traficantes internacionais.
Na
ocasião, Marina explicou que o uso da bebida tinha
origem imemorial nas tradições indígenas
e o sincretismo com a tradição católica
trazida pelos imigrantes nordestinos acabou gerando a manifestação
do Santo Daime. O senador Tião Viana ainda convidou
o embaixador espanhol para visitar o Acre e conhecer a cultura
amazônica, inclusive as comunidades daimistas. Houve
ainda vários depoimentos favoráveis como os
de Frei Betto, Frei Leonardo Boff e um documento de apoio
assinado por 13 bispos católicos, entre os quais dois
ex-presidentes da Conferência Nacional dos Bispos no
Brasil (CNBB) e dois bispos espanhóis. Os parlamentares
ainda entregaram ao embaixador espanhol um livro com o Hinário
do fundador da doutrina, padrinho Raimundo Irineu Serra.
Depois
de passarem 51 dia presos, Fernando Ribeiro e Chico Corrente
foram soltos, ficaram em liberdade condicional e dois meses
e meio depois lhes devolveram os passaportes tendo sido o
caso dado por encerrado e extinto o processo, inclusive aqueles
movidos contra os 6 daimistas espanhóis.
Na
esteira destes acontecimentos, a igreja espanhola entrou com
processo na justiça visando registro no Departamento
de Assuntos Religiosos, ligado ao Ministério da Justiça
e depois de perder em duas instâncias ganhou o direito
à legalidade por decisão da Audiência
Nacional.
Não tóxico
Segundo
Juan, o fato decisivo para a vitória do Santo Daime
foi a comprovação de que ele não é
tóxico. Foi fundamental um parecer pedido pela Audiência
Nacional à Oficina de Narcóticos da ONU, com
sede em Viena, segundo o qual a Ayahuasca e nenhuma das plantas
que a compõem estão sujeitos à sua fiscalização.
O
Tratado de Substâncias Proibidas pelo Convênio
de Viena já tem 30 anos de antiguidade e é subscrito
por quase todos os países do mundo, inclusive o Brasil.
Por ele, o DMT (dimetiltriptamina) está proibido mas
não estão definidas as faixas de tolerância
pelo que é muito difícil estabelecer uma quantidade
tóxica.
Juan
explica que as legislações internacionais estabelecem
que em caso de não haver tabela de tolerância
se considera uma substância perigosa para a saúde
quando tem mais de 2% desse alcalóide proibido em seu
conteúdo. O tribunal espanhol que iniciou o processo
contra os daimistas pensavam que o Daime tinha entre 20% a
70% de DMT. Segundo Juan, eles estavam tão mal informados
que confundiram a Ayahuasca com o próprio DMT, pensando
ser a mesma coisa.
-Por
isso - analisa Juan - quando as análises toxicológicas
determinaram que o conteúdo de DMT em todas as garrafas
de Daime recolhidas não ultrapassava 0,08% não
tiveram mais remédio que liberar Fernando e Chico e
arquivar o caso. O perito oficial ainda certificou que com
este conteúdo de DMT a Ayahuasca não é
prejudicial para a saúde. Finalmente, a sentença
afirmava que, além disso, o consumo desta substância
feito em um templo, entre pessoas certas, não aberto
a todo mundo e em um contexto religioso não é
um delito. Esta foi a base de nosso posterior êxito
ante o Governo espanhol.
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