Santo Daime -
Comunidades Urbanas
José Murilo C. Carvalho Jr.
II. A Doutrina.
Tudo começa com
um personagem quase inverossímil, um adolescente maranhense negro, de medidas
avantajadas, que aos 13 anos resolve embarcar na trilha dos soldados da borracha,
embrenhando-se na direção oeste pela floresta amazônica. Era o início do século e o
jovem Irineu trabalhou na seringa até tornar-se soldado de fronteira, quando então
passou a ter acesso às terras estrangeiras adjacentes à Amazônia brasileira.
No Peru e na Bolívia, através de amigos, tomou conhecimento da bebida conhecida
na região como ayahuasca. Ouviu tratar-se de instrumento de pesquisa no mundo das
energias espirituais, caminho dos xamãs, podendo ter efeitos curadores mas também sendo
propiciador de torturas físicas e psíquicas - sua tradução: vinho da alma. De fato,
Irineu se interessou pela bebida e buscou contato com ela.
O contato deu-se em revelação, e Irineu recebeu como incumbência direta fundar
uma linha de trabalho espiritual, a qual estaria centrada na consagração daquela bebida
de uso imemorial dentro do contexto da cultura e simbolismo cristãos e se utilizando dos
conhecimentos espiritualistas ameríndios, brasileiros, africanos e orientais. Tal
sincretismo abrangente teve como berço a cidade brasileira de Rio Branco, Acre, onde
Irineu Serra finalmente se instalou e deu início à sua saga como líder espiritual.
No decorrer do século, a partir de meados da década de 30, Irineu foi
reconhecido como Mestre pelo seu trabalho de assistência, amparo e condução a todos
aqueles que se interessavam pela sua linha de trabalho espiritual. Naturalmente passou a
trabalhar com a cura espiritual, acercando-se principalmente dos casos onde a medicina
dava-se por vencida e o sofrimento não encontrava alívio em parte alguma. Irineu era a
"árvore sombreira" para muitos, inclusive para gente importante - políticos e
fazendeiros - que o buscavam na hora da dor extrema.
Neste período passou a canalizar da dimensão espiritual mensagens que lhe
chegavam em forma de cantigas simples, hinos, os quais passaram a compor os hinários
(coleções de hinos), fio condutor da doutrina. Em torno de Irineu Serra formou-se a
egrégora do Santo Daime, e para os que conhecem a força deste trabalho não é difícil
imaginar o calibre espiritual exigido para a execução desta tarefa hercúlea.
Em 1970, quando de sua passagem para a dimensão espiritual, Mestre Irineu já
era o Chefe Império, o monarca de uma linhagem que estava pronta para se espalhar na
tarefa de "doutrinar o mundo inteiro", como diz um de seus hinos. E tudo isso
lembrando de um dos mandamentos primeiros recebidos ainda na revelação da doutrina ao
Mestre: não se pode convidar.
E não se convida, mas se fala. E foi esse ímpeto de falar da doutrina e viver
verdadeiramente os ensinamentos nela contidos que, após a ausência de Mestre Irineu,
movimentou um de seus discípulos diretos, Sebastião Mota de Melo. Seu carisma e seu
respaldo na dimensão espiritual e na doutrina o levaram a conduzir um grupo para a
concretização de um projeto comunitário fundamentado nos ensinamentos simples que os
hinos transmitiam.
Tratava-se de restabelecer a convivência cristã, imbuída agora de uma noção
moderna que nos sugere voltar à natureza e nos relembra de valores simples, quase
esquecidos. Comunidade na floresta, consciência ecológica posta em prática, Amazônia -
pulmão do mundo, Brasil. O "Padrinho" Sebastião, como passou a ser conhecido
por seus muitos "afilhados", abre o trilheiro na mata e após algumas investidas
iniciais, funda a Vila Céu do Mapiá, estado do Amazonas.
Distante dois dias de caminho a canoa pelas trilhas dos igarapés, o Céu do
Mapiá passou a ser visitado por simpatizantes nacionais e estrangeiros e hoje
constitui-se um lugar de peregrinação de uma vanguarda espiritual. Com cerca de 700
moradores e uma grande população flutuante de visitantes, vive hoje o desafio de
aparelhar-se para cumprir seu papel de matriz internacional de um trabalho espiritual
reconhecido amplamente como sendo de altíssima qualidade.
Mas os visitantes do Mapiá quando retornam para suas cidades trazem em sua
bagagem a semente de uma proposta de transformação. As ferramentas para a
concretização da proposta traduzem-se em um sacramento, hinos para serem comungados por
uma corrente de mentalização espiritual, e o espaço e infra-estrutura necessários para
a realização do encontro. A fórmula está pronta e basta apenas que se unam as
capacidades - isto é, a comunidade, agora, urbana.
Esta é a realidade de uma doutrina viva, que acontece dentro de cada um e revela
seus resultados na prática do dia-a-dia. Isto está acontecendo hoje em várias cidades
do mundo, e está acontecendo em Brasília, na comunidade Céu do Planalto. Minha
intenção é salientar algumas das observações interessantes que pudemos realizar, e
compartilhar da visão das pessoas deste encontro que, certamente, estão sensíveis a
este tipo de comunicação.
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