A Vida e a Obra de Sebastião Mota
Antes de falar da originalidade do seu ensino e as possibilidades de sua aplicação para a crise espiritual dos dias de hoje, vamos falar um pouco de quem era Sebastião Mota de Melo. Nascido no Seringal Monte Lígia em1920, desde cedo demonstrou propensão para fazer viagens astrais e ter visões dos seres encantados da floresta. Começou sua carreira de curador e rezador nos ermos do Vale do Juruá. Desenvolveu-se mediunicamente na Doutrina Espírita através de seu compadre Oswaldo, que era kardecista. Mudou-se no final dos anos 50 para as proximidades de Rio Branco com a família, onde levava uma vida de colono e atendia doentes do seu círculo de parentes, compadres e afilhados. Sua fama começou a se tornar notória e passou a dedicar cada vez mais tempo aos trabalhos de caridade. Trabalhava com duas entidades espíritas: o Dr. Bezerra de Menezes e o Professor Antonio Jorge.
Nos anos 60, contraiu uma grave enfermidade no fígado, que o levou a procurar o Mestre Irineu. A experiência de sua cura através de uma operação espiritual por ele presenciada fora do seu próprio corpo, o levou a ser colhido pela Doutrina do Mestre Irineu e pelo Santo Daime. Nesse dia, durante um trabalho de concentração, o Mestre Irineu, depois de ouvir suas queixas, perguntou-lhe se ele era homem. Em seguida, mandou que ele fosse para a fila tomar o Daime e depois do trabalho viesse contar o que acontecera.
Sebastião Mota voltou para contar a história de sua cura. Voltou não só naquele dia mas em muitos outros, trazendo para o Alto Santo, a sede de trabalhos do Mestre Irineu, muitos dos seus familiares e seguidores. A partir daí ele foi se desenvolvendo dentro do Daime, recebendo suas instruções, que falavam inclusive que ele devia se preparar para erguer um Templo e receber um povo. Ele passava tudo a limpo, diretamente com o Mestre, todas as instruções, assim como os hinos. Depois do desencarne do Mestre Irineu, resolveu seguir o seu destino, e sentiu o Mestre confirmando espiritualmente sua missão. Tudo isso ele declarou em seu hinário O Justiceiro, onde revela todas as provas que passou para afirmar a sua missão espiritual.
É dificil falar de influências na formação espiritual de Sebastião Mota. Gostava de falar que devia todo o seu aprendizado espiritual ao Daime, esta verdadeira escritura daqueles que não sabem ler e onde se encontra um Deus bem mais chegado. Em um hino que recebeu, lamenta por aqueles que falam em Deus porque ouvem os outros falar, em vez de procurar conhecê-Lo através de sua própria experiência de realização.
Seguindo uma tradição que remonta aos tempos do Mestre Irineu, Sebastião Mota foi filiado ao Círculo Esotérico de Comunhão do Pensamento. Já em idade avançada se interessou pelas leituras da Bíblia, por alguns Evangelhos Apócrifos(o Evangelho de Tomé era um dos seus preferidos), e pela obra de Jorge Adoum, o Mago Jefa. Porém, o seu interesse pelas obras espirituais era tanto maior quanto via nelas os relatos e as confirmações sobre as suas próprias experiências. Mas sem dúvida, ele encontrou em alguns desses livros, conceitos chaves que serviam para explicar as suas percepções e vivências espirituais mais profundas.
Dominava diversas passagens das escrituras, tanto do Velho como do Novo Testamento, as quais ia acrescentando o conhecimento direto e intuitivo das suas próprias mirações.Também gostava de citar as parábolas, enriquecendo-as com saborosas e originais interpretações de caráter esotérico e simbólico. Seu interesse maior era por Daniel, Ezequiel e o Apocalipse. Sempre citava esses livros quando sua intenção era despertar no povo a compreensão dos tempos de hoje. Pois, segundo ele, a transformação do mundo poderia acontecer de repente, num piscar de olhos, da mesma forma que falavam esses profetas. Dizia ainda que muitos achavam que, nos dias de hoje, essas profecias não iriam mais acontecer. Mas que seria exatamente nestes tempos modernos que Deus viria mudar o tempo e o mundo, contrariando todas as expectativas.
Em uma passagem do seu relato, ele nos conta uma história muito engraçada de duas senhoras crentes que um dia foram até a sua casa a fim de convencê-lo a comprar o exemplar de uma Bíblia. Ele começou dizendo que não fazia questão, porque não sabia ler, as mulheres insistiam e ele termina perdendo a paciência e dizendo para as duas incômodas vendedoras que, além de não saber ler, na verdade ele não precisava de livro nenhum, que ninguém precisa de livro para realizar Deus, que ele próprio é um Deus encarnado, etc. Ele nos contava esta passagem rindo, se lembrando da cara das crentes horrorizadas com tanta heresia. Mas se por um lado ele radicalizara aquela situação porque queria que elas fossem embora e deixassem de ser inconvenientes, por outro, suas palavras enérgicas e até mesmo ingênuas demonstram verdadeiramente o que ele pensa de Deus e de si próprio. E isso nem sempre é muito fácil. Por declarar algo muito semelhante a isso, Jesus foi crucificado, o grande santo sufi Hallaj foi torturado e esquartejado assim como muitos outros.
Hoje não se costuma mais queimar, crucificar ou empalar ninguém que realiza a verdade e que tem a coragem de proclamá-la. Mas em compensação, existem outros meios mais sutis, como a mídia, para impedir que as consciências acessem a dimensão espiritual e possam ter um discernimento para encontrar uma forma de vida mais nobre e altruísta. Tudo que é espiritual e representa um pensamento religioso não convencional, ou é ridicularizado ou posto sob suspeita. De qualquer maneira, são muito semelhantes a experiência e a palavra de todos aqueles que no decorrer de épocas e tradições distintas, alcançaram a realização de Deus, a revelação da Verdade. Lendo as biografias desses grandes homens verifica-se a semelhança dos seus ensinos.
O que essa coincidência quer dizer basicamente é que todas as verdades espirituais nos falam de uma única e mesma coisa. Que a experiência de realização espiritual é rigorosamente a mesma. Que a fonte mais categorizada para aferir a verdade da revelação é o êxtase místico. Por que nele, temos uma experiência direta de Deus, sem atravessadores, cujo conteúdo é rigorosamente o mesmo, apesar de se apresentar de diversas formas. Cada um segue o caminho que lhe é mais apropriado. Por outro lado, a falta de conteúdo místico da maioria das religiões institucionalizadas faz com que essa procura seja empreendida em um rumo cada vez mais distante do contexto cultural e religioso daquele que busca. O que explicaria, pelo menos no Ocidente, a procura cada vez maior das correntes orientais, xamânicas e enteógenas.
Chegando à comunidade espiritual do Santo Daime, no início da década de 80, a primeira coisa que me vinha à mente era a comparação daquilo que eu estava vendo com outros modelos de comunidades, mosteiros ou ashrans que eu conhecera ou ouvira falar. Nas noites tropicais coalhadas de estrelas, ouvindo aquele homem de longas barbas brancas falar emocionado na sua fé na vida espiritual e os conhecimentos que obtivera dela, nos sentíamos como que arrebatados em um êxtase.
Era na varanda da sua casa, envolto num cenário mágico, que ele dava seus darshans ou iniciações. É claro que a comunidade fundada por Sebastião Mota diferia e muito dos ashrans inspirados nas tradições milenares dos hindus, com seus santos absortos em samadi e indiferentes ao mundo. A espiritualidade do Padrinho Sebastião emanava de um homem cheio de energia e ocupado com os seus afazeres. Sua comunidade espírita, ao contrário das suas similares orientais, mais parecia um enorme canteiro de obras, onde as lições espirituais eram fornecidas juntamente com as árduas tarefas que cada um precisava assumir no dia-a-dia.
Só era possível encontrar o Padrinho depois das quatro horas da manhã em seu quarto, quando a doença apertava. Ou então nos dias de chuva torrencial quando ficava na varanda, atendendo a todos. Mas a melhor hora para ouvi-lo era a partir das três da madrugada na cozinha da casa grande. Ainda no escuro, à luz de velas, os ferros eram afiados, o café fumegava no bule. Sebastião contava casos e atuado, fazia preleições que eram verdadeiras pérolas espirituais atiradas para uma platéia ávida e absorta que se reunia em torno da carismática figura. Foram precisamente nesses momentos que a maior parte das gravações deste livro foram feitas. Ao amanhecer do dia, os visitantes que vinham vê-lo, já não o encontravam em casa. O jeito era procurar seus rastros nas picadas da mata onde ia trabalhar na confecção de suas canoas.