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Santo Daime - Comunidades Urbanas
José Murilo C. Carvalho Jr.

IV - Os Hinos são as Correntes.

Sempre que abordo em pensamento a doutrina do Santo Daime sinto uma emoção especial por estar percebendo algo vivo, que se constrói e se configura a cada dia. Na verdade estamos falando de um movimento cultural profundamente ligado nas urgências atuais deste fim de século, e com especificidades tão significativas que merecem destaque. Neste ponto me refiro aos hinos do Santo Daime, ou "Daime Songs", como já são conhecidos, inclusive na Internet. Instrumento de revelação pessoal e grupal constante, cumpre o papel de difusão da mensagem doutrinária e abre o espaço da busca da coesão na convivência - através da harmonização do canto, da música e do ritmo na execução dos hinos nos trabalhos espirituais.
Tudo começa, assim como tudo que diz respeito ao Daime, na figura de Raimundo Irineu Serra. Sem nenhum conhecimento ou aptidão musical, este seringueiro teve a incumbência de introduzir a ferramenta da comunhão no canto dentro do contexto do estado especial de consciência obtido com a bebida. De fato o canto de ícaros e chamadas cantadas nas sessões com ayahuasca não se constitui novidade, mas a democratização da performance para todos os participantes é marca registrada do movimento iniciado em Rio Branco.
Mestre Irineu, em seus primeiros dias de contato com a bebida, escutava sussurros cantarolados, e a ordem era compartilhar estas mensagens com quem o acompanhava e preparar as canções para serem entoadas solene e vibrantemente quando dos trabalhos com a consagração da bebida. E então, na força do Daime, as mensagens que poderiam a princípio parecer frases ingênuas foram ganhando a força de uma palavra doutrinária vigorosa, e a vibração das idéias e símbolos contidos no hino perpassando as consciências em uníssono revelou o poder de gerar uma egrégora.
No decorrer dos trabalhos, os acompanhantes de Mestre Irineu passaram a acessar este mesmo canal de revelação e a formar suas próprias coleções de hinos. Dessa forma, na medida em que são cantados nos trabalhos os hinos recebidos pelos seus membros, o grupo se alimenta permanentemente com as instruções para as quais cada um se faz canal. A revelação se democratiza, e então a identificação dos membros participantes com a egrégora passa a ser direta pois passa por uma revelação pessoal. Os hinos configuram-se como um fantástico meio de fomentar a coesão do grupo e reafirmar os valores da doutrina.
Podemos elaborar muitos conceitos para tentar explicar o processo de inspiração que dá origem aos hinos: pode-se falar de psico-musico-grafia, ou mensagens poético-musicais recebidas da dimensão espiritual, ou mesmo de inspiração espiritual pessoal pura e simples. Mas somente quem já passou pela experiência de "receber um hino" pode dar um testemunho mais aproximado. Cada pessoa que entra em contato com a doutrina e a percebe como um apoio em seu processo de auto-conhecimento imediatamente sente uma atração especial pela mensagem dos hinos, e pode passar a escutar seus próprios sussurros.
A experiência de "receber hinos", segundo alguns, se aproxima um pouco do insight como conhecido dentro da psicoterapia. Em geral condensa uma espécie de visão ou abordagem sobre um determinado tema, invariavelmente invocando as forças positivas através dos símbolos específicos da linha do Daime. Pode conter mensagens transformadoras para o receptor ou para o grupo. Em síntese, a mensagem recebida através do hino pode significar correções de rumo, saudações, invocações, ensinamentos ou simplesmente festa, sempre exaltando o valor da união - representada de forma concreta e continuada no esforço da comunhão das vozes.
A partir do hinário do Padrinho Sebastião, e com o surgimento das comunidades baseadas em sua perspectiva da doutrina, uma nova prática se fez presente com relação à canalização de hinos, os quais começaram esporadicamente a ser recebidos e dedicados a algum membro do grupo. Passou a ser comum estarmos cantando o hino dentro dos trabalhos e ver registrado o nome da pessoa a quem aquele hino foi dedicado, e perceber então a relação e a mensagem de uma forma mais direta. Este mecanismo tem o efeito de explicitar ainda mais a relação aberta e profunda entre os membros do grupo. É comum pessoas serem conhecidas pelos seus hinos, recebidos ou dedicados.
Nas viagens de membros a outras igrejas ou por ocasião de encontros nacionais e internacionais da doutrina, ocorre então o intercâmbio de hinários. Escutam-se então os "últimos hinos" de um e de outro membro mais ou menos famoso. Há os que são famosos pela beleza de seus hinos, e outros que colecionam dezenas de hinos ofertados por outras pessoas. Dentro da cultura do Daime os hinos formam uma meta-linguagem que desempenha inúmeras funções na liturgia, no aspecto social de integração grupal, e na concretização da identidade específica da doutrina.
Então, nas comunidades como um todo são muito conhecidos os "ensaios", momentos onde são aprimorados os hinários dos mestres da doutrina a serem cantados nas datas tradicionais, e onde também são conhecidas as mensagens que cada um recebe e traz para compartilhar com o grupo. Existe um consenso que a mensagem só se transforma em hino da doutrina quando cantada pelo grupo em consagração, e portanto, é uma batalha pessoal de cada receptor fazer da sua mensagem um hino comungado nas vozes de seus companheiros. Há os que primam pela performance, no canto ou no instrumento, outros que vencem pela insistência em mostrar suas mensagens, e outros ainda que precisam ser instigados a mostrarem suas mensagens pessoais. De toda forma, um hinário pessoal é como uma bandeira a ser desfraldada, e este aspecto da doutrina do Daime realmente merece uma atenção especial.
Nesse processo, vários aspectos do ego individual e das relações interpessoais são trabalhados utilizando a mobilização do estado especial proporcionado pelo Daime. Ao receptor do hino, cantá-lo frente ao grupo no estado elevado de um trabalho com a bebida abrange vários significados: (1) a afirmação pessoal de dar algo de si para o grupo, algo originário daquele mesmo contexto e que o reforça; (2) a aceitação amorosa ao receptor por parte dos membros no ato de acompanhar o canto; (3) a difusão de questões pessoais para sua imediata relativização enquanto mensagem para o grupo, algo com efeito catártico para o sujeito receptor; e algumas outras dimensões mais amplas características da própria doutrina.
Podemos desenvolver um pouco mais os três aspectos citados acima: (1) o momento de mostrar um novo hino recebido para a comunidade implica um desvelar-se, mostrar aos outros as "flores do seu jardim"; ensinamentos que vem através do Daime se manifestar no formato da doutrina, expressos em hinos e retratando momentos pessoais sintetizados em símbolos (geralmente pertencentes ao panteão daimístico) os quais projetam as questões pessoais pulverizando-as em soluções positivas para o grupo. No momento em que os participantes se esforçam por alinhar suas vozes à melodia e perceber a mensagem contida no hino (2) para então poder cantá-lo com firmeza, estão recebendo de forma afetuosa o "presente" dedicado, sem perder a noção de que, em algum momento, estarão nessa mesma situação de mostrar um hino ao grupo, e que estarão esperando a força dos companheiros para a tarefa de "firmar" o hino. Nesse processo (3) a mensagem do hino, que tinha um foco localizado no ponto de vista do receptor, adquire novos contornos na medida em que perpassa outras consciências. O "dono" do hino recebe então um feedback sobre a sua contribuição, e muito da energia da situação que originou o hino é transmutada.
Falando em termos genéricos e explorando as conhecidas funções terapêuticas da música e do canto, sabemos que um trecho melódico contempla várias dimensões: ritmo, cadência, melodia e dinâmicas específicas, além da própria mensagem textual. A busca de entrosamento pelos integrantes de uma performance musical envolve um aspecto de precisão que permeia essas várias dimensões. Este processo, acontecendo no contexto do estado especial proporcionado pelo Daime, auxilia a integração e a relativização das experiências envolvendo conteúdos pessoais internos com o fluxo da corrente. Além disso, o hino pode ser lido, ouvido e sentido, colocando os sentidos no papel de âncora no aqui e agora, e enfatizando aspectos do real. Os aspectos de realidade e estrutura colocam a música como valoroso meio terapêutico e referencial coletivo dentro de um trabalho espiritual do Santo Daime.
A questão do ritmo também se sobressai na medida em que vários participantes no ritual fazem uso dos "maracás", que são chocalhos metálicos de som marcante os quais determinam a cadência das marchas, valsas e mazurcas - ritmos tradicionais dos hinos do Daime. Os inúmeros maracás têm de chegar a um consenso sobre o andamento do hino, podendo variar segundo o "pique" próprio do hino ou o momento do trabalho, mas o referencial de cadência invariavelmente vem dos comandantes do trabalho e das "puxadoras" (as cantoras responsáveis pela precisão do hino). É comum em alguns momentos do trabalho perceber-se uma certa desarmonia, um desencontro de vozes, maracás e instrumentos. Cada participante do trabalho irá perceber esta mudança de clima, e isto certamente colorirá com as cores respectivas a vivência pessoal daquele momento. São essas as situações onde a "firmeza" da corrente é solicitada para que a desarmonia seja transmutada em perfeição, e que nesse movimento a corrente realize, nas várias dimensões individuais, as transmutações necessárias para aquele momento específico do trabalho.
Portanto, o mandamento é para cada participante buscar a sua adequação no rito, ou na linguagem dos hinos, que "componha a corrente" dando o melhor de si. Na medida em que os trabalhos espirituais do Daime têm como característica a longa duração, lidar com o cansaço, desânimo, e respectivos corolários simbólicos cumpre função importante. É a hora em que é necessário perceber que dentro de um trabalho de Daime "o que se pedir o Mestre dá". A denominação Daime vem mesmo do verbo dar - um pedido, uma invocação: dai-me força, dai-me luz, dai-me amor. Uma vez percebido o mecanismo de trocas energéticas que ocorre permanentemente durante um trabalho com a bebida, mais fácil fica de se utilizar de tal situação para o trabalho de limpeza e transmutação propriamente dito. O cansaço e o desânimo são então dominados e transmutados dentro do estado especial, havendo pois grande possibilidade de que também na vida diária cansaço e desânimo sejam subjugados. Mas até o alcance da percepção deste mecanismo muitas etapas tem de ser vencidas, exigindo do aspirante muita concentração e disciplina, além de uma boa dose de disposição para o trabalho.
Aí estão pois alguns dos mecanismos de trabalho da doutrina do Santo Daime, especificamente no que se refere aos hinos. O trabalho da doutrina em si é uma experiência tão singular que realmente não tenho pretensão de esgotá-la com palavras, mas penso ter dado alguns esclarecimentos válidos para o que se remete aqui. Muitas outras características são dignas de registro, assim como a própria experiência direta com a bebida é fundamental para emoldurar e contextualizar o que foi descrito aqui. Mas, como foi dito acima, não se convida. Quem se sentir tocado a buscar mais informações sobre este trabalho poderá nos encontrar no decorrer do encontro.

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