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Santo Daime - Comunidades Urbanas
José Murilo C. Carvalho Jr.

III - A construção de um Céu.

Sempre sonhei algum dia por em prova tudo aquilo que vi ser brilhantemente exposto em termos teóricos. De alguma forma a doutrina do Santo Daime me proporciona esta vivência. Através desta linha de trabalho, e sob a condução de Fernando de La Rocque Couto, antropólogo conhecido de vocês por ter exposto seus estudos sobre xamanismo aqui neste mesmo fórum no ano passado, um grupo de pessoas resolveu concretizar uma experiência comunitária. Daí surgiu a comunidade Céu do Planalto, que reúne hoje em torno de 40 moradores e por volta de 90 freqüentadores, entre colaboradores, simpatizantes e visitantes.
O nome Céu se origina da denominação da localidade matriz da doutrina, às margens do igarapé Mapiá, rio Purus, estado do Amazonas - o Céu do Mapiá. O Padrinho Sebastião tinha a proposta de concretizar o céu na terra, e dentro do mesmo (nada modesto) intuito, nos reunimos para formar o Céu do Planalto. Para alguns de nós então, há 5 anos atrás, já era claro que as revoluções internas individuais ocorridas dentro dos trabalhos espirituais com o Daime necessitavam de um espaço de convivência especial, para que pudessem se externalizar e concretizarem uma convivência grupal transformada. No entanto, não havia uma idéia clara de como se daria tal empreitada.
Tínhamos consciência de que a visão preconcebida de comunidade embutia inúmeros clichês que precisariam ser desmistificados. Dentro do grupo inicial, algumas pessoas já haviam experimentado outros trabalhos de auto-desenvolvimento, trazendo consigo tanto a valiosa experiência da caminhada realizada como o conhecimento das dificuldades inerentes a esta trajetória, principalmente quando falamos em termos de projetos conjuntos. Tratava-se de colocar em prática os quatro pilares referenciais da doutrina: Harmonia, Amor, Verdade e Justiça; e a partir daí construir o espaço ideal para o encontro de cada um consigo mesmo. Buscar verdadeiramente a realização desta forma elevada de amor que é o reconhecimento do nosso Eu Superior interno, e viver a certeza da possibilidade desse mesmo processo (contagiante) acontecer em todos os irmãos.
A idéia principal, portanto, era que nos reuníssemos. Com o rateio das economias de oito famílias foi adquirido um terreno de chácara em local próximo da cidade e com vista privilegiada, mas bastante protegido por um acesso não pavimentado e um tanto quanto difícil. Ali fizemos inicialmente a Igreja, no ponto mais alto do terreno, e em seguida passamos a realizar os trabalhos espirituais, que são tradicionalmente longos (5 a 12hs dependendo da modalidade). A proximidade e a beleza do local foi atrativo suficiente para que algumas pessoas se aventurassem a dar o passo definitivo de fixar moradia, construindo suas casas de forma harmonizada com a paisagem do vale. Estava fundada a comunidade ou, ao menos, um condomínio paroquial do Santo Daime.
A atividade econômica do espaço, que normalmente reúne as forças dos membros de uma comunidade e a define como tal, inicialmente apresentou-se como uma questão a ser discutida. Quase todos os integrantes do grupo de moradores já tinham colocações profissionais satisfatórias, que, inclusive, ajudavam a manter as despesas decorrentes da manutenção do centro. Uma idéia central que acompanha todas as atividades do centro espiritualista comandado por Fernando La Rocque é de que todos os membros (sem nenhuma exceção) devem contribuir com as mensalidades e obrigações financeiras, e que ninguém deve extrair seu sustento básico diretamente do trabalho com a doutrina. Pois então quem já estava colocado no mercado assim continuou, e os mais jovens ou sem colocação passaram a buscar formas de integrar a vivência comunitária e o rendimento econômico.
Inicialmente alguns membros, contaminados pelos clichês citados acima, imaginaram "viver da terra", almejando um retorno bucólico à vida simples. Para nós logo ficou claro que esta proposta era artificial e não levava em consideração a formação e a bagagem que cada um já trazia em termos de especialização profissional e vivência. Qualquer iniciativa agrícola viável necessitaria desse mesmo profissionalismo já alocado e desenvolvido em outras áreas. E na verdade, qualquer desvio em direção de uma comunidade agrícola ou qualquer outra atividade econômica competitiva dispersaria a energia do nosso foco principal: a experiência espiritual. E então se percebeu que a vocação do grupo enquanto tal estava indissoluvelmente ligada à infra-estrutura do trabalho com o Daime - e ficou claro que isso incluía e integrava de forma perfeita a convivência diária com colegas de trabalho na cidade, com familiares e amigos, enfim, com Brasília.
De fato, esta foi a pedra de toque dentro de cada um no sentido de perceber qual o tipo de trabalho a ser desenvolvido. Nossa matriz no coração da floresta, o Céu do Mapiá, através do Santo Daime irradia para todo o mundo esta nova luz do retorno à espiritualidade que está próxima da natureza. Nós que estivemos lá naquele jardim da Terra e pudemos atestar a força dessa mensagem, a trouxemos então para a cidade - coisa que muitos acreditaram não ser possível. Tratou-se de perceber a forma como fazer e então, a comunidade urbana Céu do Planalto, centro do Santo Daime no Planalto Central, foi adquirindo uma identidade própria. Pela vivência conjunta e através dos trabalhos o grupo se faz canal e aparelho ideal para a difusão desta mensagem na cidade de Brasília.
A reaproximação com a natureza e com os valores básicos da sobrevivência no contato direto com a terra, aspecto sempre realçado na experiência proporcionada pelo Daime, achou sua manifestação comunitária no cultivo dos jardins de "rainha" e de "jagube" - plantas utilizadas na confecção da bebida sacramental, e no paisagismo das áreas de convívio. Por outro lado, esta mesma percepção condensada em termos de ação urbana como consciência ecológica originou no grupo a formação de uma ONG com fins de proteção ambiental local, com atuação a nível institucional e educativo no âmbito do público visitante às nascentes e cachoeiras da área da comunidade.
Enfocar estritamente no trabalho de proporcionar a experiência espiritual do Santo Daime já requer uma infra-estrutura bastante complexa e especializada, e este é o ofício conjunto realizado pelos membros da comunidade Céu do Planalto. Desde a recepção de visitantes, que envolve palestras introdutórias e entrevistas de avaliação e anamnese, até os trabalhos propriamente ditos, com um número de participantes que gira em torno de 120 pessoas e envolvendo uma equipe de músicos, cantoras, fiscais, tesouraria e recepção, e passando pelo trabalho com manutenção e manuseio dos estoques de Daime, tudo é realizado em sistema de rodízio pelos membros da comunidade.
Além dos trabalhos, o grupo morador sabe que a experiência proporcionada pelo Santo Daime acarreta uma movimentação a nível de padrões internos de percepção que fará com que os visitantes que se sintam mais identificados com o grupo busquem uma convivência mais próxima. É como se surgisse a pergunta: "depois de tudo isso, e agora, como é que se faz?" Portanto é comum as casas dos moradores da comunidade e as áreas de convívio serem bastante freqüentadas pelos visitantes e simpatizantes, facilitando o processo de irradiação de uma nova forma de relação e criando um tipo específico de identidade grupal. Cada membro morador tem, hoje, consciência do seu papel de lastro material para que seja alçado o vôo espiritual dentro dos trabalhos.
E afinal, o que é esta transformação? Imaginar que as pessoas tomem uma bebida e por si passem a morar juntas e terem uma vida renovada parece um tanto absurdo. No mínimo algo está faltando para que esse processo possa ser melhor entendido. Nos propomos então a explanar uma das chaves do mistério - o meio de comunicação espiritual que tem uma configuração bastante específica dentro da doutrina do Santo Daime: os hinos inspirados pela dimensão espiritual - ou "recebidos". A partir de Mestre Irineu em sua revelação inicial, cada membro "fardado" é considerado receptáculo da doutrina que é irradiada na forma de hinos para serem comungados nos momentos de consciência especial proporcionados pela corrente firmada e pelo Daime consagrado dentro dos trabalhos espirituais.

Os hinos são as correntes
Tu bem vistes em mim
Que sai da tua boca
E transmite em ti

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