Uma visita ao Santo Daime
Em
novembro de 2003, aconteceram várias viagens aos
Centros Daimistas de todo o Brasil. Apresentamos aqui as
impressões de um destes grupos que visitou Brasília
e a Floresta Amazônica.
Viagem
ao Juruá
Daniel Pinchbeck
Recentemente,
visitei alguns centros do Santo Daime com Jyoti, nossa guia
da rede Kayumari, e outros dez ocidentais da Europa e dos
Estados Unidos, em uma viagem que durou três semanas.
Nossa primeira parada foi Brasília, a capital do Brasil,
uma cidade modernista construída a partir do nada em
1960. Ficamos na comunidade do Santo Daime nos arredores da
cidade, e participamos de duas cerimônias enquanto estávamos
lá.
Inicialmente,
senti uma resistência profunda ao trabalho com Santo
Daime. Nas cerimônias shamânicas que participei
anteriormente, nós tomamos ‘medicina’ no
escuro, e o foco era na experiência de visões
individuais. Nas cerimônias do Santo Daime, as luzes
ficaram acesas, e a energia focalizada em criar um tipo de
mente grupal. Mais tarde, José Murilo e Fernando La
Rocque, nossos anfitriões, explicaram que chamam isto
de “shamanismo coletivo”. Também levei
algum tempo para me acostumar com os hinos, que pareceram
muito estranhos a princípio. Além disso, senti
uma poderosa reação negativa à idéia
de uma estrutura religiosa formal onde as pessoas usam uniformes,
sentam em filas, e os homens são separados das mulheres.
Eu
tive que sair constantemente da igreja. Saía para me
sentar perto do fogo aceso do lado de fora ou andar a esmo
olhando as estrelas. Há guardiões designados
a tomar conta da cerimônia e eles sempre vinham até
mim para me convencer a voltar para dentro. Para mim, naquele
momento, me pareceu uma violação da minha liberdade
pessoal ter de participar do trabalho. Voltei mas com grande
relutância. Eu senti raiva de suas tentativas de restringir
minha independência.
De
Brasília, nosso grupo voou seis horas até a
Floresta Amazônica no Oeste do Brasil. Ficamos em uma
comunidade Daimista chamada Céu do Cruzeiro do Sul.
Eles têm um lindo centro de cerimônias, pintado
em branco e azul, com faixas coloridas. Para nossa única
noite, organizaram um trabalho que implicava em dançar
a noite toda. A dança era simples, de apenas dois passos,
todos indo de cá para lá dentro de um espaço
mínimo de um metro. Dancei um pouco, então minha
resistência cresceu de novo. Saí e me sentei
perto do fogo, depois voltei à minha rede. Nesta comunidade,
ninguém parecia se preocupar se eu estava ou não
em meu lugar.
Voltei
sozinho para meu quarto de hóspede e percebi que não
queria mesmo participar da cerimônia. Minha resistência
desapareceu instantaneamente. Voltei e dancei o resto da noite,
e comecei a entender porque o Santo Daime têm trabalhos
de uma forma tão rigorosa. Quando eu me permiti entrar
“na corrente”, como eles dizem, senti que a ‘medicina’
não estava apenas me apresentando a uma força
ou presença divina, mas também limpando minha
psique. Era parecido com a meditação Budista
da não/mente onde pensamentos aparecem e desaparecem
sme nossa interferência.
Na
manhã seguinte, voltei e sentei por um instante na
igreja vazia. Pela primeira vez em minha vida, senti que entendia
a natureza da devoção como prática espiritual.
Me pareceu que a devoção era uma vibração
ou um tipo de freqüência que ajudava a segurar
a estrutura da realidade. Me emocionei e senti muita gratidão
por ter sido apresentado a esta prática cerimonial.
Daí
entramos num barco, viajando com Padrinho Alfredo e Luís
Fernando por dois dias e meio, descendo o rio Juruá.
Paramos brevemente para visitar o centro Daimista de Ipixuma
e depois viajamos até a vila dos Estorrões,
também conhecida como Céu do Juruá. Por
alguma razão, eu estava um pouco amedrontado com essa
viagem antes de sair de Nova York, e não podia nem
mesmo me forçar a olhar no mapa para ver nosso destino.
Tudo que sabia era que íamos entrar fundo na Amazônia.
Na
primeira noite, depois de um lindíssimo pôr do
Sol, entramos em nossa redes e balançamos com o barco.
A minha estava armada no convés superior, sob um pequeno
telhado. Foi uma experiência incrível. À
noite eu acordei e descobri tudo encoberto pela neblina, as
árvores eram como fantasmas nas margens. Me senti flutuando
no vazio, em direção ao abismo, tremendamente
libertador.
Finalmente
o cais. Parte do nosso processo de iniciação
foi aprender como se faz o sacramento do Santo Daime (ayahuasca),
trabalhar com as duas plantas que são cozidas juntas,
o cipó e a folha. Assim que atracamos, fomos levados
à casa comunitária onde um enorme monte de folhas
nos aguardava. Elas deviam ser limpas individualmente, folha
por folha. Geralmente só as mulheres realizam este
trabalho mas por alguma razão eles decidiram que os
homens deveriam tentar também.
No
começo, limpar as folhas parecia uma tarefa impossível
e interminável. Mas, nos deram Daime para tomar, e
depois de algum tempo toda tarefa transformou-se em algo intensamente
prazeroso. Senti como se cada folha estivesse se apresentando
como um divindade feminina que demandava atenção.
Parecia que a ‘medicina’ me ensinava como cuidar
dela. Imerso no trabalho, perdi a noção do tempo.
Paramos
para o almoço depois andar por quatro horas dentro
da floresta, até a comunidade do Céu do Juruá
que é considerada um dos centros espirituais mais importantes
do Santo Daime. Pelos padrões ocidentais, é
um lugar rudimentar – sem telefone, eletricidade ou
água encanada. As casas ficam penduradas em longas
trilhas na floresta como peças de um colar. Uma grande
ponte liga a parte baixa ao centro da comunidade onde há
uma cozinha central, uma área para refeições,
um santuário a céu aberto e uma pequena igreja.
Fomos
levados ao nosso grande e único quarto, onde armamos
as redes e mosquiteiros. Foi preciso algum esforço
para me acostumar com o calor e a umidade da floresta.
Logo
aprendemos a seguir o exemplo dos moradores, que sabiam como
ficar quietos e conservar suas energias durante as horas mais
quentes do dia. Eram muito amigáveis, e pareciam nos
ajudar por termos realizado esta longa viagem para visitá-los
e participar de seus rituais. Fomos bem recebidos, sem julgamento,
na vida da comunidade.
Durante
os próximos dias, nosso trabalho centrou-se ao redor
da casa de feitio onde o Daime é preparado. Aprendi
como trabalhar com o Cipó – limpando as partes
mofadas e podres e depois batendo até reduzi-lo a filamentos
para o cozimento.
Tivemos
duas cerimônias, presididas por Padrinho Alfredo, que
é o líder da igreja. Fiquei muito impressionado
com ele. Muito gentil e, apesar disso, confiei imediatamente
nele e em sua maestria no Daime. As cerimônias foram
extraordinariamente belas e emocionantes. Descobri que realmente
queria estar conectado com esta tradição que
tinha estabelecido um contato tão direto com o sagrado.
Dois de meus amigos sentiram o mesmo. Antes de sairmos da
selva, decidimos que nos fardaríamos. Contamos nossa
decisão a Luís Fernando.
O
último trabalho foi de cura. A energia foi tão
enorme, as visões tão intensas, que tive medo
de não suportar, mas Alfredo permaneceu firme mesmo
durante o pior. De vez em quando eu podia ver a “Mãe
da Floresta”, como um ser astral grandioso, dançando
acima de nossas cabeças. Senti algo que só posso
descrever como Presença Divina no centro da sala, acima
do altar, onde a energia das cantoras estava centrada. Eu
podia ver seres astrais que pareciam vir a mim trazendo flores
e frutos.
Por
um longo tempo tive a sensação que havia uma
figura escura do meu lado esquerdo, e fiquei com medo de ser
algo ameaçador. Finalmente, em meu estado visionário,
eu olhei e percebi que era Alfredo me oferecendo uma mão.
Em minha visão, eu apertei sua mão. Ele me deu
um sorriso maravilhoso e desapareceu.
No
dia seguinte, depois de nos juntarmos para um último
abraço e uma foto grupal com Alfredo e sua família,
deixamos o Juruá. Pegamos uma canoa pelos afluentes
menores até alcançar nosso barco no rio. Por
quase uma hora e meia, uma águia voou junto de nós,
planando de árvore em árvore enquanto prosseguíamos.
Parecia um sinal de boa sorte.
Esta
viagem foi a experiência mais bonita da minha vida.
Agradecimento
Jyoti
Há
dez anos vou ao Brasil mas esta foi minha primeira viagem
a Brasília. Sei que não será a última.
Nos trabalhos que tivemos lá, a Mãe estava tão
presente com a sensação de muitas bênçãos
a todos. Obrigada Fernando e Clarice e Eduardo e Luciana e
Murilo por sua gentil e amável hospitalidade. Vocês
e seus amigos trazem uma bela visão de unidade e paz.
Quero
agradecer ao povo bonito do Céu do Cruzeiro do Sul
que, com grande devoção, mantém aberto
o portão para o Juruá. E foi uma alegria especial
poder abraçar meu novo afilhado, Carlos Irineu. Esta
foi apenas minha segunda visita às comunidades do Juruá
mas me senti como que retornando a minha casa. Nosso trabalho
foi sagrado, focado no feitio, a preparação
do Daime. Foi um tempo de grande cura e aprofundamento de
nossa conexão com a verdadeira fonte.
Em
nossa última noite no Céu do Juruá, após
outro lindo por do Sol, nos juntamos a toda comunidade para
um trabalho de cura. Foi uma das mais belas noites da minha
vida. Pad. Alfredo me pediu para sentar em frente a ele, do
outro lado da mesa. Enquanto olhava a fotografia de seu pai
e sua mãe, Padrinho Sebastião e Madrinha Rita,
circundada por um altar de flores do Jardim da Natureza, era
como se o paraíso estivesse aberto e despejasse uma
luz dourada sobre todos nós.
Meu
coração está cheio de gratidão
pela sabedoria e liderança de Alfredo, e por tanto
apoio e boa amizade de Silvia, Rute, Luís, Luzenir
e Elisabeth. Estes presentes irão me sustentar nestes
tempos de grandes mudanças e desafios. Vocês
me enviaram de volta para casa com a esperança renovada
em meu coração e a coragem em minhas ações
para continuar neste caminho de amor e união.
Retornando do
Juruá, retornando a New York
by Angelina Nasso
De
volta a Nova York. Tempo de integração. Cada
célula de meu corpo guarda a riqueza da floresta. Cada
célula e osso em meu corpo sente como se tivesse sido
trabalhado – massageado – purificado. É
estranho estar de volta a este mundo tão cheio de distrações
– tanto nos tira de quem realmente somos. Fico pensando
sobre o Juruá – um lugar que me conecta com a
eternidade. Eu retorno com minha alma e coração
cheios. Abençoada pelo Daime e a Rainha da Floresta,
o medo jogado fora. A vibração do amor cuida
de tudo – meu corpo mau pode suportar a beleza que vem.
Uma respiração profunda – lembrando toda
natureza – o divino presente em nós.
Sinto
enorme gratidão pelo Padrinho Alfredo e Luís
Fernando por gentilmente nos oferecerem esta oportunidade.
Palavras são insuficientes para descrever quão
importante é poder entrar em comunhão com o
divino desta forma. O Santo Daime me expandiu com amor e me
ensinou como posso levar amor em meu coração
de uma forma graciosa e humilde enquanto ando por este mundo
que luta com tanta escuridão.
Li
esta pequena passagem de um livro escrito por Santa Teresa
d’Ávila durante nossa viagem de volta. Ela realmente
se aplica:
“Eu já vi com meus olhos e sei por experiência
que a alma em êxtase é dona de tudo, e ganha
tal liberdade em uma hora ou até menos e por isso
não consegue se reconhecer. Ela vê perfeitamente
que isso não é conquista sua, e não
sabe como recebeu tamanha bênção. Depois
vem a dificuldade de retornar à vida. Agora a alma
ganhou asas para suportar, e soltou suas penas fracas. Agora
a bandeira foi levantada bem alto para Cristo, e realmente
parece que o capitão do forte está subindo,
ou sendo levantado, até a torre mais alta, para hasteá-la
no cume em nome de Deus”.
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