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Resposta da antropóloga Beatriz
Labate à revista "VEJA"
Com enorme surpresa e
indignação li a matéria O Barato Legal. Ela é tendenciosa e possui um tom
gratuitamente irônico e pejorativo. Mas pior: faz uma série de afirmações incorretas,
dos detalhes aos pressupostos mais amplos. Sou antropóloga e recentemente defendi minha
dissertação de mestrado na UNICAMP justamente sobre a expansão do uso desta bebida de
origem amazônica para as metrópoles do centro-sul do país.
Em primeiro lugar, após
três longos anos de investigação exaustiva pelos subterrâneos da cidade de São Paulo
em busca de usos "alternativos" e "liminares" do vinho considerado
sagrado, não constatei um ambiente sequer onde ocorra um uso não ritualístico da
ayahuasca, uma forma de consumo desregrada e livre desta substância, "como uma droga
qualquer". Ao contrário, a pesquisa verificou que os usos mais recentes da bebida
vêm ocorrendo sempre no interior de um conjunto de símbolos religiosos, padrões,
regras e limites amplamente instituídos. Tais rituais fazem parte de uma verdadeira cultura
ayahuasqueira, que está ligada a nossas matrizes religiosas (as antigas
tradições indígenas amazônicas, os conhecimentos populares dos seringueiros, o
esoterismo europeu, os cultos de origem afro, além das mais recentes interfaces com as
religiosidades urbanas, como por exemplo com o movimento new age). O consumo religioso da
ayahuasca representa, pois, mais uma rica e criativa contribuição da cultura brasileira,
sendo um fenômeno que merece atenção e respeito.
Em segundo lugar, a
reportagem, ao sugerir que o governo "faz vista grossa" com relação ao
problema, omite com má fé o longo processo através do qual a situação legal atual de
consumo da ayahuasca consolidou-se. Entre 1985 e 1987 o CONFEN suspendeu o consumo da
bebida e institui um grupo de pesquisa multidisciplinar que estudou sistematicamente o
"alucinógeno" e seus "usuários", tendo chegado a conclusão de que o
seu uso não representava perigo ou ameaça à ordem pública ou à saúde do indivíduo.
Em 1992 foram feitas novas denúncias e foi reaberto o processo, o tema sendo estudado
novamente. Outra vez, a comissão reafirmou seu parecer anterior. O relatório sugeriu,
como antes, que o processo pode e deve ser revisto diante da alteração do atual quadro.
Neste caso, se a reportagem oferecesse alguma informação concreta, nova, poderia, de
fato, estar contribuindo para a discussão do problema. Mas o autor chove no molhado. E,
erra e confunde, também, ao afirmar que o chá é exportado para São Paulo "sob o
nome vago de chá medicinal". A ayahuasca é devidamente qualificada e
transportada através de papelada regulamentada pelo IBAMA.
Em terceiro lugar,
sugere-se irresponsavelmente em legenda sensacionalista ("quando a religião faz mal
a saúde") que a ayahausca é prejudicial à saúde humana, fato até o momento não
comprovado por nenhuma pesquisa de cunho científico (nem mesmo por aquela citada na
reportagem!). Ao contrário, o consenso entre todos os estudos biomédicos realizados até
o momento é que a substância não causa dependência física nem psicológica. Não há
registrado um caso sequer de "surto psicótico seguido de morte súbita". De
onde vem esta informação?!
Ainda: porque tomar as
crenças alheias como "lorotas"? (Uma narrativa pode ser sempre manipuladora:
"guru bebe álcool para supostamente sentir Deus" em lugar de "padre
celebra a missa".) Ou seja: o outro, o diferente, é sempre o fanático, o louco,
aquele que segue uma "seita" ao invés de uma "religião". Enfim,
apropriando-me das palavras do autor: "dai-me, dai-nos, paciência"... para
aguentar a leviandade através da qual alguns se julgam no direito de rotular e difamar as
práticas religiosas minoritárias e de origem popular. Na década de 30 houve
perseguição contra a umbanda; hoje, o vilão da moral e dos bons costumes é outro.
BEATRIZ CAIUBY LABATE |
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