GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO
- GMT- AYAHUASCA
RELATÓRIO FINAL
I - INTRODUÇÃO
1. O CONAD é o órgão
normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas – SISNAD – e suas decisões
“deverão ser cumpridas pelos órgãos
e entidades da Administração Pública
integrantes do Sistema” (arts. 3o, I, 4o, 4o, II
e 7o, do Decreto no 3.696, de 21/12/2000). Assim, no exercício
de sua competência legal aprovou parecer da CATC
que, por sua vez, adotou pareceres do colegiado que o
precedeu – o CONFEN – e abordou outros aspectos
pertinentes ao tema “o uso religioso da ayahuasca”
cumprindo destacar a observação final e
as conclusões do parecer que o CONAD aprovou: “que
fique registrado em ata, para fins, inclusive de utilização
pelos interessados, que não pode haver restrição,
direta ou indireta, às práticas religiosas
das comunidades, baseada em proibição do
uso ritual da Ayahuasca”.
2. O referido parecer concluiu: “a)
a câmara ratifica as decisões anteriores
do colegiado, com os aditamentos do presente parecer,
conforme referido no ponto no 4; b) recomenda-se a consolidação,
em separata, de todas as decisões supracitadas,
para acesso e utilização dos interessados;
c) a liberdade religiosa e o poder familiar devem servir
à paz social, à qual se submete a autonomia
individual; d) deve ser reiterada a liberdade do uso religioso
da Ayahuasca, tendo em vista os fundamentos constantes
das decisões do colegiado, em sua composição
antiga e atual, considerando a inviolabilidade de consciência
e de crença e a garantia de proteção
do Estado às manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, com base
nos arts. 5o, VI e 215, § 1o da Constituição
do Brasil, evitada, assim, qualquer forma de manifestação
de preconceito”.
3. A Resolução nº 05
– CONAD, de 10 de novembro de 2004, tem por objetivo
contribuir para a plena implementação do
que foi discutido e aprovado ”sobre o uso religioso
da Ayahuasca”, e para tanto foi constituído
o GMT que, assim, terá por premissas as questões
decididas pelo CONAD, para laborar, com ampla liberdade,
no “estudo do que é preciso fazer”,
ou seja, na formulação de documento que
“traduza a deontologia do uso da Ayahuasca”.
4. O Grupo Multidisciplinar de Trabalho,
instituído pela Resolução nº.
5 CONAD, de 04 de novembro de 2004, para levantamento
e acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca, bem como
para a pesquisa de sua utilização terapêutica,
em caráter experimental, foi oficialmente instalado
pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional
da Presidência da República e Presidente
do Conselho Nacional Antidrogas, JORGE ARMANDO FELIX,
em 30 de maio de 2006, no Palácio do Planalto,
em Brasília-DF, e teve como objetivo final a elaboração
de documento que traduzisse a deontologia do uso da Ayahuasca,
como forma de prevenir seu uso inadequado.
5. AYAHUASCA, aqui, é referida de
modo genérico, para manter a uniformidade do texto
e a harmonia com a nomenclatura utilizada nos atos oficiais
do CONAD, mas é conhecida por diversos outros nomes,
conforme a comunidade que o usa no Brasil ou no Exterior,
destacando-se as expressões mais conhecidas “HOASCA”,
“SANTO DAIME” e “VEGETAL”, compostos,
indistintamente, pelo cipó Banisteriopsis caapi
(jagube, mariri etc) e pela folha Psychotria viridis (chacrona,
rainha etc.).
6. Nos termos da referida Resolução,
o GMT foi composto por seis estudiosos , indicados pelo
CONAD, das áreas que atenderam, dentre outros,
os seguintes aspectos: antropológico (representado
pelo Dr. Edward John Baptista das Neves MacRae), farmacológico/bioquímico
(Dr. Isac Germano Karniol), social (Drª Roberta Salazar
Uchoa), psiquiátrico (Dr. Dartiu Xavier da Silveira
Filho) e jurídico (Drª Ester Kosovski) e seis
membros, convidados pelo CONAD, representantes dos grupos
religiosos que fazem uso da Ayahuasca, eleitos em Seminário
realizado em Rio Branco nos dias 9 e 10 de março
de 2006, a saber: Linha do Padrinho Sebastião Mota
de Melo: Alex Polari de Alverga; Linha do Mestre Raimundo
Irineu Serra: Jair Araújo Facundes e Cosmo Lima
de Souza; Linha do Mestre José Gabriel da Costa:
Edson Lodi Campos Soares; Linha Independente (Outras Linhas):
Luis Antônio Orlando Pereira e Wilson Roberto Gonzaga
da Costa. Considerando que a linha do Mestre Daniel Pereira
de Matos, popularmente conhecida como linha da Barquinha,
decidiu não participar do GMT, conforme carta endereçada
ao CONAD, foi realizada durante o seminário eleição
entre os suplentes já eleitos das linhas presentes
para o preenchimento da vaga em aberto. Nesta ocasião
foi eleito mais um representante da linha do Mestre Raimundo
Irineu Serra.
7. O GMT contou com o apoio da Secretaria
Nacional Antidrogas, representada pela Diretora de Políticas
de Prevenção e Tratamento, Drª Paulina
do Carmo Arruda Vieira Duarte, e da Assessoria Executiva
do CONAD, representada pelas Sras. Déborah de Oliveira
Cruz e Maria de Lourdes Carvalho. Em suas reuniões
ordinárias contou com o apoio do Dr. Domingos Bernardo
Gialluisi da Silva Sá, Jurista, Membro Titular
do CONAD e da Câmara de Assessoramento Técnico
Científico, também representada pelo Dr.
Marcelo de Araújo Campos e pela Drª Maria
de Lourdes Zenel.
8. Além da primeira reunião
em que os membros do GMT foram empossados, foram realizadas
mais seis reuniões de trabalho na Sala de Reuniões
da Secretaria Nacional Antidrogas, nos dias 28/06, 28/07,
28/08, 23 e 24/10 e 23/11, todas registradas em atas,
durante as quais se discutiu a seguinte pauta: cadastramento
das entidades; aspectos jurídicos e legais para
regulamentação do uso religioso e amparo
do direito à liberdade de culto; regulação
de preceitos para produção, uso, envio e
transporte da Ayahuasca; procedimentos de recepção
de novos interessados na prática religiosa; definição
de uso terapêutico e outras questões científicas;
Ayahuasca, cultura e sociedade; e, sistematização
do trabalho para elaboração do documento
final.
9. O objetivo final do GMT, nos termos da
Resolução nº 05/04, do CONAD, é
identificar “o que é preciso fazer”
para atender aos diversos itens que integram os direitos
e obrigações pertinentes ao “uso religioso
da Ayahuasca”. O “estudo” desse “o
que é preciso fazer” constituiu-se, exatamente,
nas atividades desenvolvidas pelo GMT, traduzindo, assim,
a “deontologia do uso da Ayahuasca”: (deon,
do grego: “o que é preciso fazer” +
logos, também do grego: “estudo” ).
II - HISTÓRICO DA REGULAMENTAÇÃO
DO USO DA AYAHUASCA
10. A instituição do Grupo
Multidisciplinar de Trabalho expressa dever constitucional
do Estado Brasileiro de proteger as manifestações
populares e indígenas e garantir o direito de liberdade
religiosa. Representa o coroamento do processo de legitimação
do uso religioso da Ayahuasca no país, iniciado
há mais de vinte anos, com a criação
do 1º Grupo de Trabalho do CONAD (na época
CONFEN), designado para examinar a conveniência
da suspensão provisória da inclusão
da substância Banisteriopsis caapi na Portaria nº
02/85, da DIMED (Resolução nº. 04/85,
do CONFEN).
11. Este primeiro estudo, após dois
anos, com a realização de várias
pesquisas e visitas às comunidades usuárias
em diversos Estados da Federação, principalmente
ao Acre, Amazonas e Rio de Janeiro, resultou em extenso
relatório , de setembro de 1987, subscrito pelo
então Conselheiro do CONFEN, Doutor Domingos Bernardo
Gialluisi da Silva Sá, Presidente do Grupo de Trabalho,
que concluiu que as espécies vegetais que integram
a elaboração da bebida denominada de Ayahuasca
ficassem excluídas das listas de substâncias
proscritas pela DIMED.
12. Esta conclusão foi aprovada pelo
plenário do antigo Conselho Federal de Entorpecentes,
em reunião de setembro de 1987, de sorte que a
suspensão provisória da interdição
do uso da Ayahuasca, levada a termo pela Resolução
nº 06, do CONFEN, de 04 de fevereiro de 1986, tornou-se
definitiva, com a exclusão da bebida e das espécies
vegetais que a compõem das listas da DIMED.
13. A despeito disso, em 1991, em face de
denúncia anônima, por iniciativa do então
Conselheiro do CONFEN, Paulo Gustavo de Magalhães
Pinto, Chefe da Divisão de Repressão a Entorpecentes
do Departamento de Polícia Federal, a “questão
do uso da Ayahuasca” foi reexaminada.
14. Disso resultou mais uma vez, por parte
do CONFEN, a realização de estudos acerca
do contexto de produção e do consumo da
bebida, desenvolvidos pelo Doutor Domingos Bernardo Gialluisi
da Silva Sá, o qual, em parecer conclusivo de 02/06/92,
aprovado por unanimidade na 5ª Reunião Ordinária
do CONFEN realizada na mesma data, considerou que não
havia razões para alterar a conclusão proposta
em 1987, no relatório final já mencionado
.
15. Dez anos depois, em face de denúncias
de uso inadequado da bebida Ayahuasca, a maior parte divulgada
na imprensa e outras tantas dirigidas aos órgãos
do Poder Público, notadamente CONAD, Polícia
Federal e Ministério Público, fato que está
amplamente documentado na consolidação das
decisões e estudos do CONAD e de outras instituições
acerca do uso da Ayahuasca, novo Grupo de Trabalho foi
definido pela Resolução nº 26, de 31
de dezembro de 2002.
16. De acordo com esta resolução,
o GT deveria ser composto por diversas instituições
, com base no princípio da responsabilidade compartilhada,
agora com o objetivo de fixar normas e procedimentos que
preservassem a manifestação cultural religiosa,
observando os objetivos e normas estabelecidas pela Política
Nacional Antidrogas e pelos diplomas legais pertinentes.
Não há registro de que este grupo tenha
sido constituído.
17. Em 24 de março de 2004 o CONAD
solicitou à Câmara de Assessoramento Técnico
Científico a elaboração de estudo
e parecer técnico-científico a respeito
de diversos aspectos do uso da Ayahuasca, ocasião
em que o referido órgão de assessoramento
do CONAD emitiu parecer apresentado e aprovado na Reunião
do CONAD de 17/08/04, o qual serviu de fundamento à
Resolução nº 5, do CONAD, de 04/11/04,
que institui o atual Grupo Multidisciplinar de Trabalho.
III - ANDAMENTO DAS REUNIÕES
18. A fim de atender aos termos da resolução
que o instituiu, o GMT teve como primeira tarefa, depois
de eleger o Presidente e o Vice-Presidente do Grupo, respectivamente
Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho e Edson Lodi Campos
Soares, a elaboração do Cadastro Nacional
das Entidades Usuárias da Ayahuasca - CNEA.
19. Acerca desse tema, muitos foram os questionamentos
levados em consideração pelo grupo, a começar
pela finalidade do referido cadastro, que não deve
servir de mecanismo de controle estatal sobre o direito
constitucional à liberdade de crença (art.
5º, VI, CF). Discutiu-se também acerca de
sua objetividade, de sorte que não constassem exigências
que viessem a invadir o direito individual à intimidade,
vida privada e imagem dos usuários (art. 5º,
X, CF). Nesse sentido, chegou-se ao consenso de que responder
ou não ao cadastro seria uma faculdade das entidades.
20. Fixados esses parâmetros, o formulário
de cadastro foi colocado à disposição
dos interessados, acompanhado de carta explicativa e cópia
da Resolução nº. 05/04, do CONAD. Até
a presente data foi cadastrada quase uma centena de entidades,
dando também uma dimensão parcial das diversas
práticas que são adotadas pelas entidades
que fazem uso da Ayahuasca no Brasil. O cadastro continua
disponível às entidades interessadas.
21. O GMT procurou destacar e consolidar
as práticas que para as próprias entidades
representam o uso religioso adequado e responsável,
anteriormente estabelecidos na “Carta de Princípios”,
resultado do 1º Seminário das entidades da
Ayahuasca, realizado em Rio Branco em 24 de novembro de
1991. Nas discussões priorizaram-se os seguintes
temas: definição de uso ritual, comércio,
turismo, publicidade, associação da Ayahuasca
com outras substâncias, criação de
novos centros, auto-sustentabilidade das entidades, procedimentos
de recepção de novos interessados, curandeirismo,
uso terapêutico, assim como definição
de mecanismos para tornar efetivos os princípios
deontológicos formulados. A maior parte das deliberações
do grupo foi consensual e estão sintetizadas no
item V – Conclusão.
IV – TEMAS DISCUTIDOS
IV.I – USO RELIGIOSO DA AYAHUASCA
22. Ao longo de décadas o uso ritualístico
da Ayahuasca – bebida extraída da decocção
do cipó Banisteriopsis caapi (jagube, mariri etc.)
e da folha Psychotria viridis (chacrona, rainha etc.)
– tem sido reconhecido pela sociedade brasileira
como prática religiosa legítima, de sorte
que são mais do que atuais as conclusões
de relatórios e pareceres decorrentes de estudos
multidisciplinares determinados pelo antigo CONFEN, desde
1985, que constatavam que “há muitas décadas
o uso da Ayahuasca vem sendo feito, sem que tenha redundado
em qualquer prejuízo social conhecido” .
23. A correta identificação
do que é uso religioso, segundo os conceitos e
práticas ditadas, a partir das próprias
entidades que fazem uso da Ayahuasca, permitirá
assegurar a proteção da liberdade de crença
prevista na Constituição Federal. Considerando
a ocorrência de registros de uso não religioso
da Ayahuasca, sua identificação possibilitará
prevenir práticas que não se amoldam à
proteção constitucional.
24. Trata-se, pois, de ratificar a legitimidade
do uso religioso da Ayahuasca como rica e ancestral manifestação
cultural que, exatamente pela relevância de seu
valor histórico, antropológico e social,
é credora da proteção do Estado,
nos termos do art. 2o, “caput”, da Lei 11.343/06
e do art. 215, §1º, da CF. Devem-se evitar práticas
que possam pôr em risco a legitimidade do uso religioso
tradicionalmente reconhecido e protegido pelo Estado brasileiro,
incluindo-se aí o uso da Ayahuasca associado a
substâncias psicoativas ilícitas ou fora
do ambiente ritualístico.
IV.II – COMERCIALIZAÇÃO
25. O GMT reconhece o caráter religioso
de todos os atos que envolvem a Ayahuasca, desde a coleta
das plantas e seu preparo, até seu armazenamento
e ministração, de modo que seu praticante
de tudo participa com a convicção de que
pratica ato de fé e não de comércio.
Daí decorre que o plantio, o preparo e a ministração
com o fim de auferir lucro é incompatível
com o uso religioso que as entidades reconhecem como legítimo
e responsável.
26. Quem vende Ayahuasca não pratica
ato de fé, mas de comércio, o que contradiz
e avilta a legitimidade do uso tradicional consagrado
pelas entidades religiosas.
27. A vedação da comercialização
da Ayahuasca não se confunde com seu custeio, com
pagamento das despesas que envolvem a coleta das plantas,
seu transporte e o preparo. Tais custos de manutenção,
conforme seja o seu modo de organização
estatutária, são suportados pela comunidade
usuária. E é evidente, também, que
a produção da Ayahuasca tem um custo, que
pode variar de acordo com a região que a produz,
a quantidade de adeptos, a maior ou menor facilidade com
que se adquire a matéria prima (cipó e folha),
se se trata de plantio da própria entidade ou se
as plantas são obtidas na floresta nativa, e tantas
outras variáveis.
28. Historicamente, porém, de acordo
com a experiência das entidades religiosas chamadas
a compor o Grupo Multidisciplinar de Trabalho, esse custo
é partilhado no seio da instituição
por meio das contribuições dos membros de
cada entidade. Os sócios respondem pelas despesas
de manutenção da organização
religiosa, nas quais estão incluídos os
gastos com a produção da Ayahuasca, com
prestação de contas regular.
29. O uso religioso responsável na
produção da Ayahuasca é delineado
a partir da constatação das práticas
das entidades: a) cultivar as plantas e preparar a Ayahuasca,
em princípio, para seu próprio consumo;
b) buscar a sustentabilidade na produção
das espécies; e, c) quando não possuir cultivo
próprio e nenhuma forma de obtenção
da matéria prima na floresta nativa – sem
prejuízo de buscar a auto-suficiência em
prazo razoável – nada obsta obter o chá
mediante custeio das despesas tão somente, evitando-se
que pessoas, grupos ou entidades se dediquem, com exclusividade
ou majoritariamente, ao fornecimento a terceiros.
IV.III – SUSTENTABILIDADE
DA PRODUÇÃO DA AYAHUASCA
30. A cultura do uso religioso da Ayahuasca,
por se tratar de fé baseada em bebida extraída
de plantas nativas da Floresta Amazônica, pressupõe
responsabilidade ambiental na extração das
espécies. As entidades religiosas devem buscar
a auto-sustentabilidade na produção da bebida,
cultivando o seu próprio plantio.
IV.IV – TURISMO
31. Turismo, como atividade comercial, deve
ser evitado pelas entidades, que por se constituírem
em instituições religiosas, não devem
se orientar pela obtenção de lucro, principalmente
decorrente da exploração dos efeitos da
bebida.
32. A Constituição Federal
garante o livre exercício dos cultos religiosos,
que tem como conseqüência o direito à
propagação da fé através do
intercâmbio legitimo de seus membros. Neste sentido
todos têm direito de professar a sua fé livremente
e de promover eventos dentro dos limites legais estabelecidos.
O que se quer evitar é que uma prática religiosa
responsável, séria, legitimamente reconhecida
pelo Estado, venha a se transformar, por força
do uso descomprometido com princípios éticos,
em mercantilismo de substância psicoativa, enriquecendo
pessoas ou grupos, que encontram no argumento da fé
apenas o escudo para práticas inadequadas.
IV.V - DIFUSÃO DAS INFORMAÇÕES
33. A publicidade da Ayahuasca também
tem sido motivo de deturpações e abusos,
notadamente na Internet. Observa-se, principalmente neste
meio de comunicação, o oferecimento de toda
espécie de cursos e oficinas remuneradas, cujo
elemento central é o uso da Ayahuasca associado
a promessas de experiências transformadoras descomprometidas
com o ritual religioso.
34. A partir das experiências das
entidades e de suas práticas rituais, verifica-se
que o uso ritual responsável é incompatível
com a publicidade e a oferta de promessas de curas milagrosas,
de transformações pessoais arrebatadoras
e com a indução das pessoas a acreditarem
que a Ayahuasca é o remédio para todos os
males. É consenso no GMT que quem faz uso religioso
responsável não divulga informações
que possam induzir as pessoas a terem uma imagem fantasiosa
da Ayahuasca e trata do tema com discrição,
sem fazer alardes dos efeitos da substância.
IV.VI - USO TERAPÊUTICO
35. Para fins deste relatório “terapia”
é compreendida como atividade ou processo destinado
à cura, manutenção ou desenvolvimento
da saúde, que leve em conta princípios éticos
científicos.
36. Tradicionalmente, algumas linhas possuem
trabalhos de cura em que se faz uso da Ayahuasca, inseridos
dentro do contexto da fé. O uso terapêutico
que tradicionalmente se atribui à Ayahuasca dentro
dos rituais religiosos não é terapia no
sentido acima definido, constitui-se em ato de fé
e, assim sendo, ao Estado não cabe intervir na
conduta de pessoas, grupos ou entidades que fazem esse
uso da bebida, em contexto estritamente religioso. Em
outra condição se encontram aqueles que
se utilizam da bebida fora do contexto religioso. Isto
nada tem que ver com uso religioso, e tal prática
não está reconhecida como legítima
pelo CONAD, que se limitou a autorizar o uso da substância
em rituais religiosos.
37. A utilização terapêutica
da Ayahuasca em atividade privativa de profissão
regulamentada por lei dependerá da habilitação
profissional e respaldo em pesquisas científicas,
pois de outra forma haverá exercício ilegal
de profissão ou prática profissional temerária.
38. Qualquer prática que implique
utilização de Ayahuasca com fins estritamente
terapêuticos, quer seja da substância exclusivamente,
quer seja de sua associação com outras substâncias
ou práticas terapêuticas, deve ser vedada,
até que se comprove sua eficiência por meio
de pesquisas científicas realizadas por centros
de pesquisa vinculados a instituições acadêmicas,
obedecendo às metodologias científicas.
Desse modo, o reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico
da Ayahuasca somente se dará após a conclusão
de pesquisas que a comprovem.
39. Com fundamento nos relatos dos representantes
das entidades usuárias, verificou-se que as curas
e soluções de problemas pessoais devem ser
compreendidas no mesmo contexto religioso das demais religiões:
enquanto atos de fé, sem relação
necessária de causa e efeito entre uso da Ayahuasca
e cura ou soluções de problemas.
IV.VI - ORGANIZAÇÃO
DAS ENTIDADES
40. O crescimento do uso da Ayahuasca e
a facilidade com que se pode comprar a bebida de pessoas
que a produzem sem compromisso com a fé têm
levado ao surgimento de novas entidades, que não
possuem experiência no lidar com a bebida e seus
efeitos, assim como fazem mau uso da Ayahuasca, associando-a
a práticas que nada têm a ver com religião.
O uso ritual caracterizado pela busca de uma identidade
religiosa se diferencia do uso meramente recreativo.
41. O uso religioso responsável da
Ayahuasca pressupõe a presença de pessoas
experientes, que saibam lidar com os diversos aspectos
que envolvem essa prática, a saber: capacidade
de identificar as espécies vegetais e de preparar
a bebida, reconhecer o momento adequado de servi-la, discernir
as pessoas a quem não se recomenda o uso, além
de todos os aspectos ligados ao uso ritualístico,
conforme sua orientação espiritual.
42. Embora se reconheça o ato de
fé solitário e isolado, usualmente a prática
religiosa se desenvolve coletivamente. É recomendável
que os grupos constituam-se em organizações
formais, com personalidade jurídica, consolidando
a idéia de responsabilidade, identidade e projeção
social, que possibilite aos usuários a prática
religiosa em ambiente de confiança.
IV.VII - PROCEDIMENTOS DE RECEPÇÃO
DE NOVOS ADEPTOS
43. Além dos princípios inerentes
a cada uma das linhas doutrinárias na recepção
de novos membros, é razoável e prudente
que ao se ministrar a Ayahuasca seja levado em conta o
relato de alterações mentais anteriores,
o estado emocional no momento do uso e que eles não
estejam sob efeito de álcool ou outras substâncias
psicoativas.
44. Antes de ingerir pela primeira vez,
o interessado deve ser informado acerca de todas as condições
que se exigem para o uso da Ayahuasca, conforme a orientação
de cada entidade. Uma entrevista prévia, oral ou
escrita, deve ser realizada no sentido de averiguar as
condições do interessado e a ele devem ser
dados os esclarecimentos necessários acerca dos
efeitos naturais da bebida.
45. É recomendável que cada
entidade acompanhe os participantes até a finalização
de seus rituais, excetuada a saída previamente
solicitada em casos excepcionais e com a anuência
do responsável.
IV.VIII – USO DA AYAHUASCA
POR MENORES E GRÁVIDAS
46. Tendo em vista a inexistência
de suficientes evidências cientificas e levando
em conta a utilização secular da Ayahuasca,
que não demonstrou efeitos danosos à saúde,
e os termos da Resolução nº 05/04,
do CONAD, o uso da Ayahuasca por menores de 18 (dezoito)
anos deve permanecer como objeto de deliberação
dos pais ou responsáveis, no adequado exercício
do poder familiar (art. 1634 do CC); e quanto às
grávidas, cabe a elas a responsabilidade pela medida
de tal participação, atendendo, permanentemente,
a preservação do desenvolvimento e da estruturação
da personalidade do menor e do nascituro.
V - CONCLUSÃO:
a. Considerando que o CONAD, acolhendo parecer
da Câmara de Assessoramento Técnico Científico,
reconheceu a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca,
nos termos da Resolução nº 05/04, que
instituiu o GMT para elaborar documento que traduzisse
a deontologia do uso da Ayahuasca, como forma de prevenir
seu uso inadequado;
b. Considerando que o GMT, após diversas
discussões e análises, onde prevaleceu o
confronto e o pluralismo de idéias, considerou
como uso inadequado da Ayahuasca a prática do comércio,
a exploração turística da bebida,
o uso associado a substâncias psicoativas ilícitas,
o uso fora de rituais religiosos, a atividade terapêutica
privativa de profissão regulamentada por lei sem
respaldo de pesquisas cientificas, o curandeirismo, a
propaganda, e outras práticas que possam colocar
em risco a saúde física e mental dos indivíduos;
c. Considerando que a dignidade da pessoa
humana é princípio fundante da República
Federativa do Brasil, e dentre os direitos e garantias
dos cidadãos sobressai-se a liberdade de consciência
e de crença como direitos invioláveis, cabendo
ao Estado, na forma da lei, garantir a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias (CF, arts. 1º,
III, 5º, VI);
d. Considerando a decisão do INCB
(International Narcotics Control Board), da Organização
das Nações Unidas, relativa à Ayahuasca,
que afirma não ser esta bebida nem as espécies
vegetais que a compõem objeto de controle internacional;
e. Considerando, por fim, que o uso ritualístico
religioso da Ayahuasca, há muito reconhecido como
prática legitima, constitui-se manifestação
cultural indissociável da identidade das populações
tradicionais da Amazônia e de parte da população
urbana do País, cabendo ao Estado não só
garantir o pleno exercício desse direito à
manifestação cultural, mas também
protegê-la por quaisquer meios de acautelamento
e prevenção, nos termos do art. 2o, “caput”,
Lei 11.343/06 e art. 215, caput e § 1º c/c art.
216, caput e §§ 1º e 4º da Constituição
Federal.
O Grupo Multidisciplinar de Trabalho aprovou
os seguintes princípios deontológicos para
o uso religioso da Ayahuasca:
1. O chá Ayahuasca é o produto
da decocção do cipó Banisteriopsis
caapi e da folha Psychotria viridis e seu uso é
restrito a rituais religiosos, em locais autorizados pelas
respectivas direções das entidades usuárias,
vedado o seu uso associado a substâncias psicoativas
ilícitas;
2. Todo o processo de produção,
armazenamento, distribuição e consumo da
Ayahuasca integra o uso religioso da bebida, sendo vedada
a comercialização e ou a percepção
de qualquer vantagem, em espécie ou in natura,
a título de pagamento, quer seja pela produção,
quer seja pelo consumo, ressalvando-se as contribuições
destinadas à manutenção e ao regular
funcionamento de cada entidade, de acordo com sua tradição
ou disposições estatutárias;
3. O uso responsável da Ayahuasca
pressupõe que a extração das espécies
vegetais sagradas integre o ritual religioso. Cada entidade
constituída deverá buscar a auto-sustentabilidade
em prazo razoável, desenvolvendo seu próprio
cultivo, capaz de atender suas necessidades e evitar a
depredação das espécies florestais
nativas. A extração das espécies
vegetais da floresta nativa deverá observar as
normas ambientais;
4. As entidades devem evitar o oferecimento
de pacotes turísticos associados à propaganda
dos efeitos da Ayahuasca, ressalvando os intercâmbios
legítimos dos membros das entidades religiosas
com suas comunidades de referência;
5. Ressalvado o direito constitucional à
informação, recomenda-se que as entidades
evitem a propaganda da Ayahuasca, devendo em suas manifestações
públicas orientar-se sempre pela discrição
e moderação no uso e na difusão de
suas propriedades;
6. A prática do curandeirismo é
proibida pela legislação brasileira. As
propriedades curativas e medicinais da Ayahuasca –
que as entidades conhecem e atestam – requerem uso
responsável e devem ser compreendidas do ponto
de vista espiritual, evitando-se toda e qualquer propaganda
que possa induzir a opinião pública e as
autoridades a equívocos;
7. Recomenda-se aos grupos que fazem uso
religioso da Ayahuasca que se constituam em organizações
jurídicas, sob a condução de pessoas
responsáveis com experiência no reconhecimento
e cultivo das espécies vegetais sagradas, na preparação
e uso da Ayahuasca e na condução dos ritos;
8. Compete a cada entidade religiosa exercer
rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos
adeptos, devendo proceder entrevista dos interessados
na ingestão da Ayahuasca, a fim de evitar que ela
seja ministrada a pessoas com histórico de transtornos
mentais, bem como a pessoas sob efeito de bebidas alcoólicas
ou outras substâncias psicoativas;
9. Recomenda-se ainda manter ficha cadastral
com dados do participante e informá-lo sobre os
princípios do ritual, horários, normas,
incluindo a necessidade de permanência no local
até o término do ritual e dos efeitos da
Ayahuasca.
10. Observados os princípios deontológicos
aqui definidos, cabe a cada entidade e a seus membros
indistintamente, no relacionamento institucional, religioso
ou social que venham a manter umas com as outras, em qualquer
instância, zelar pela ética e pelo respeito
mútuo.
PROPOSIÇÕES:
1. QUANTO ÀS PESQUISAS DO USO TERAPÊUTICO
DA AYAHUASCA EM CARÁTER EXPERIMENTAL:
a. Devem-se fomentar pesquisas cientificas
abrangendo as seguintes áreas: farmacologia, bioquímica,
clínica, psicologia, antropologia e sociologia,
incentivando a multidisciplinaridade;
b. Sugere-se ao CONAD que promova e financie,
a partir de 2007, pesquisas relacionadas com o uso e efeitos
da Ayahuasca.
2. QUANTO À QUESTÃO AMBIENTAL
E AO TRANSPORTE:
a. Sugere-se ao CONAD que considere a possibilidade
de intercâmbio com o CONAMA, se possível
lançando mão do auxílio das entidades
religiosas, no sentido de estabelecer medidas de proteção
às espécies vegetais que servem de matéria
prima à Ayahuasca, por meio de legislação
específica para essas plantas de uso ritualístico
religioso, as quais não podem ser tratadas indistintamente
como um produto florestal não madeireiro.
b. Sugere-se ao CONAD ainda, que faça
os encaminhamentos devidos junto aos órgãos
competentes do Estado, no sentido de regulamentar o transporte
interestadual da Ayahuasca entre as entidades, ouvindo-se
previamente os interessados.
3. QUANTO À EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS
DEONTOLÓGICOS:
a. Sugere-se ao CONAD que estude a possibilidade
de fixar mecanismos de controle quanto ao uso descontextualizado
e não ritualístico da Ayahuasca, tendo como
paradigma os princípios deontológicos ora
fixados, com efetiva participação de representantes
das entidades religiosas.
b. Solicita-se ao CONAD apoio institucional
para a criação de instituição
representativa das entidades religiosas que se forme por
livre adesão, para o exercício do controle
social no cumprimento dos princípios deontológicos
aqui tratados.
c. Sugere-se ainda, caso os princípios
deontológicos aqui definidos sejam acatados, que
disto seja dada ampla publicidade, preferencialmente com
a realização de um segundo seminário
organizado pelo próprio CONAD auxiliado pelo Grupo
Multidisciplinar de Trabalho, do qual devem participar
todas as entidades, sem prejuízo do encaminhamento
formal do ato a todos os órgãos dos Ministérios
Públicos e da Magistratura Federal e Estaduais,
Polícia Federal e Secretarias de Segurança
Pública dos Estados.
Brasília, 23 de Novembro de 2006.
Dartiu Xavier da Silveira Filho
Presidente do GMT – Representante do CONAD
Edson Lodi Campos Soares
Vice-Presidente do GMT - Representante de Mestre José
Gabriel da Costa
Paulina do Carmo Arruda V.Duarte
Representante da Secretaria Nacional Antidrogas/GSIPR
Domingos Bernardo Gialluisi da Silva Sá
Representante da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico
do CONAD
Ester Kosovsky
Universidade Federal do Rio de Janeiro e OAB-RJ
Edward John Baptista das Neves MacRae
Membro do GMT - Representante do CONAD
Roberta Salazar Uchoa
Membro do GMT - Representante do CONAD
Isac Germano Karniol
Membro do GMT – Representante do CONAD
Jair Araújo Facundes
Membro do GMT - Representante de Mestre Raimundo Irineu
Serra
Cosmo Lima de Souza
Membro do GMT - Representante de Mestre Raimundo Irineu
Serra
Alex Polari de Alverga
Membro do GMT - Representante de Padrinho Sebastião
Luis Antônio Orlando Pereira
Membro do GMT - Representante de Outras Linhas
Wilson Roberto Gonzaga da Costa
Membro do GMT - Representante de Outras Linhas