Seriam os Deuses
Alcalóides?
Alex Polari de Alverga
Text presented on:
International Transpersonal Associations Annual Conference
"The Technologies of the Sacred"
Manaus - Amazonas - Brazil
May/1996
I. Introdução
Queremos abordar aqui, através da pergunta título da nossa
conferência, um pouco do papel das plantas psicoativas no processo evolucionário da
consciência humana e do seu emprego desde a antigüidade como indutor dos estados
expandidos ou alterados de consciência. Depois nos deteremos mais detalhadamente na
questão da consciência xamânica e da descrição da "miração", estado
particular de experiência mística e êxtase visionário que ocorre sob o efeito da
bebida sacramental enteógena denominada SANTO DAIME (Ayahuasca, Yagé, Caapi, etc.) e que
por suas peculiaridades, parecem ser comum apenas ao relato de experiências com os
compostos triptamínicos. E, finalmente, considerar em que precisamente a proposta
enteógena pode se constituir em um paradigma para uma nova consciência centrada no
verdadeiro Self.
II. Uma Breve
Teologia dos Enteógenos
Para buscarmos uma resposta para nossa pergunta devemos retroceder cerca
de três milhões de anos quando o homem, destacando-se dos demais primatas superiores
começava a sua lenta evolução rumo a consciência de si mesmo. Durante o transcorrer de
todo este período, o cérebro triplicou o seu peso mas foi durante os últimos quinhentos
mil anos que se formou o néo-córtex. Podemos supor a consciência desta época como
sendo um imenso Id dominando um lento embrião do ego em formação. Antroposofícamente
falando, as mônadas ou os princípios espirituais que estavam se encarnando nessa época
na Terra, promovendo a vida e a evolução humana, ainda não estavam suficientemente
ajustados aos corpos físicos desses primeiros seres humanos. Segundo Steiner, eles teriam
uma consciência do plano espiritual e das auras dos seres e objetos do mundo material,
mas não tinham uma percepção nítida e diferenciada dos mesmos. Isso só veio a
acontecer quando houve o acoplamento definitivo entre os corpos físicos etérico do
homem, quando do ambos passaram a coincidir. Nesse momento, a consciência humana teria
deixado de ser uma "consciência de clarividência nebulosa" para ganhar mais
nitidez na apreensão do mundo material.
Nos últimos cem mil anos o processo se acelerou de forma significativa.
O Homo Sapiens tornara-se senhor do planeta e já devia contar com algo próximo de
uma consciência de si mesmo como indivíduo singular da sua espécie e um sistema
rudimentar de comunicação querendo se articular enquanto linguagem. Foi na última fase
deste período, nos últimos trinta mil anos, que uma verdadeira revolução ocorreu no
processo evolutivo. Por essa época, os nossos ancestrais caçadores e coletores já
tinham uma forma de organização solidária que lhes garantiam a sobrevivência frente ao
ataque dos predadores e os rigores do meio ambiente. Até hoje, pesquisadores e cientistas
buscam uma boa resposta para essa aceleração evolucionária, que corresponde aos
últimos preparativos para que a humanidade entrasse na cena da história. Alguns autores,
entre eles Wasson e Mckenna, apresentam uma sólida argumentação, que eu também
partilho nessa exposição, de que uma das causas principais da súbita irrupção da
auto-consciência humana teria sido a simbiose do homem com o mundo vegetal e
especificamente com os psicoativos. Essa é a perspectiva poética e visionária que
sempre se apresenta quando "consultamos" a inteligência e a memória que a
Mente Vegetal guarda desses eventos. Por meio dessa tese podemos entender também, o
cenário onde as hordas mais adaptadas desses homídeos onívoros ampliavam de forma
crescente sua dieta e seus conhecimentos sobre as plantas nutritivas, curativas e
psicoativas, o que causou mudanças e respostas cada vez mais rápidas na sua estrutura
neural, estados de consciência e comportamento.
Levi Strauss, comentando a obra de Wasson, analisa o mito da árvore do
conhecimento e a história bíblica de Adão e Eva, comendo o fruto proibido, como a
metáfora do contato do homem com o enteógeno primordial. Em outras palavras, esse seria
o momento da mudança do estado indiferenciado de clarividência nebulosa para o de
auto-consciência lúcida, o que trouxe como conseqüência a sua expulsão do Éden.
No entanto, foi no final da última glaciação, que ocorreu há uns
doze mil anos, que as condições se tornaram propícias para a difusão da agricultura,
domesticação de animais e pastoreio. A intimidade com o manejo dessa última atividade,
trouxe um contato cada vez mais estreito com os fungos psilocíbicos associados ao esterco
de gado. Floresceram a partir dessa época festas consagradas aos cogumelos sagrados, como
parte dos cultos à fertilidade associados à Grande Deusa. Vestígios arqueológicos da
arte desse período, principalmente a partir do oitavo milênio a.C., expressam de forma
literal ou estilizada, o uso cerimonial dos fungos em povos e culturas bastantes distantes
entre si. O que parece indicar a importância e a universalidade desses cultos na
formação daquilo que M. Eliade define como as primeiras hierofanias vegetais, uma
espécie de pré-religião, primeira separação que o homem fez de uma "esfera
sagrada" em oposição a um "mundo profano". Certas plantas e árvores, ou
a natureza de um modo geral, eram revestidas de atributos divinos ou mesmo divinizados.
Hoje estamos em condição de afirmar que esta postura não tinha nada de ingênua ou
simplória, correspondendo sim à ação da psilocibina e outros agentes enteógenos e as
conseqüências das visões dela decorrentes nos mitos, símbolos e arquétipos que se
apresentavam à consciência da época. Essas hierofanias vegetais foram portanto,
cronologicamente, as mais antigas que se tem notícias. O que atesta que, por esse tempo,
no limiar da história conhecida, já havia uma familiaridade com o tema do
sagrado/vegetal, do Deus/Vegetal, que remonta a tempos ainda mais longínquos. Sem
dúvida, este foi um dos principais substratos que mais tarde vieram a formar os diversos
Cultos dos Mistérios da antiguidade e às grande religiões do mundo.
Talvez o caso mais conhecido e também o mais eloqüente seja o do Soma,
que segundo os hinos do Rig-Veda era prensado e mesclado a leite para ser consumido em
rituais e cerimonias dedicados ao Deus Indra. O Soma estava entronizado numa posição de
destaque no Panteão Védico. É mesmo Haoma citado no Zed-Advesta, escrituras persas
atribuídas a Zoroastro. O que nos permite estabelecer sua raiz ária e considerar que
possa ter sido difundido pelas diversas ondas migratórias dos povos arianos que foram
penetrando o Vale do Indo entre o segundo e o primeiro milênio a.C. É igualmente
possível que com o passar do tempo, por dificuldades de suprimento ou de adaptação do
Soma nas novas terras conquistadas, tenha havido uma planta substituta, já conhecida
pelos povos drávidas que habitavam a região e cuja cultura se mesclou com a dos
conquistadores. Já a Ioga e a Filosofia Sankhya seriam adições posteriores. Suas
posturas corporais, métodos respiratórios e refinamento psicológico, enfatizavam a
sadhana, as austeridades e a meditação como o novo método para alcançar o êxtase, o
samadi, estado de consciência onde o Eu Átmico se funde no oceano de Braman.
Experiência que certamente os antigos riskhis (sábios videntes que receberam a
revelação dos Vedas) tiveram, embriagados pelo Soma.
Essas influência das plantas enteógenas na experiência dos estados
místicos associados a cultos agrários e de fertilidade, podem ser encontrados desde a
Ásia, passando pela Europa, até o extremo do continente sul-americano. O que nos permite
supor que elas foram, desde uma antigüidade ainda mais remota, o agente acelerador e o
detonador desse autêntico "Big Bang" da consciência que ocorreu nos últimos
trinta mil anos. Existe um certo consenso de que as triptaminas tenham sido esse
enteógeno primordial, não só pela reconstrução e suposição histórica, como também
e principalmente por causa da excelência e peculiaridade do êxtase ou
"miração" triptamínica, cujas visões são inigualáveis em florescência,
intensidade, conteúdo e principalmente na capacidade do Eu interagir no interior dos
eventos que fazem parte desse estado de consciência cósmica.
A consagração dos insights das visões como sendo de origem divina,
explica a reverência com que essas plantas eram tratadas. O ego recém conquistado já
podia transcender a si mesmo e travar contato com o Tu e com o Outro. Do respeito que
nasceu do homem, com a fonte ao mesmo tempo vegetal e espiritual que lhe enviava aquela
graça, aquela compreensão dele mesmo e do universo, nasceu a idéia de religiosidade, de
se religar com a sua origem e pátria cósmica. Num certo sentido, religião é aquela
ânsia de se relacionar corretamente com o Outro transcendente. Essa foi a aurora da
consciência de si mesmo. No momento em que a consciência humana transcendeu a si mesmo e
pode vislumbrar a consciência cósmica, o relâmpago precipitou-se no abismo e a Coroa do
homem iluminou-se!
Por isso os alcalóides, principalmente os triptamínicos, são fortes
candidatos a serem protodeuses. Sob seus auspícios, foi feita a primeira grande conexão
entre o mundo da jovem consciência humana recém desperta e o mundo divino e eterno,
entre o sagrado e o profano. O primeiro ancestral ou herói mítico, de Gilgamesh até
Viracocha, presentes em tantas cosmogonias de culturas tão distantes entre si, são os
ecos e as sombras dos tempos dos titãs. Onde esses semi-Deuses, metade homem e metade
Deus, foram iniciados por instrutores de uma ordem de consciência superior - vale dizer
portanto divinos - a fim de trazerem a luz, o fogo de Prometeu para repartir com os seus
irmãos.
Como a maior evidência arqueológica das contribuições realizadas,
quando na passagem dos "Deuses Alcalóides" pelos labirintos da consciência
humana, está a presença da serotonina, neuro-transmissor cerebral encarregado de
estimular os receptores dos neurônios e que tem praticamente a mesma estrutura molecular
da DMT (dimetil-triptamina) alcalóide presente nas várias plantas enteógenas usadas
pelos homens desde a antigüidade.
Mais maravilhoso ainda é essa oportunidade que a Mente Vegetal ofereceu
à Mente Humana e continua oferecendo ainda hoje na forma da mesma revelação que foi
enviada aos nossos longínquos antepassados. Isso porque, "revelação" é uma
verdade sempre idêntica em si mesma, apesar de poder ser expressa por símbolos diversos
dentro da psique humana. Ela é a mesma visão dos místicos e iniciados de todas as
idades, o que varia é apenas a convicção e o juízo de valor que tiveram sob o que
experimentaram. Isso fica claro, quando constatamos as semelhanças e pontos comuns dos
relatos das experiências de êxtase nas mais diversas tradições. Se no passado foram
considerados bem-aventurados "aqueles que não viram e creram", maior prazer
teremos nós quando pudermos enxergar tudo aquilo que a nossa fé sempre acreditou !
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