Imagine
um lugar situado no meio da floresta, com acesso apenas
por água onde habitam amazônidas puruenses,
migrantes acreanos, sulistas, estrangeiros convivendo na
floresta, sem destruí-la e tendo como fator fundamental
de integração e causa da existência
a milenar Ayahuasca, aqui conhecida como Santo Daime.
Este
lugar existe, chama-se Céu do Mapiá, está
situado no Sul do Amazonas, no município de Pauinim.
A colonização e fundação do
povoado no remoto Igarapé Mapiá é um
capítulo épico da história contemporânea
do Acre.
O
Céu do Mapiá completa 20 anos de existência
nesta terça-feira, 21 de janeiro. A comemoração
será do jeito daimista, cantando hinário,
iniciando com a festa de São Sebastião, hoje
às 18 horas, quando será cantado o hinário
do padrinho Sebastião Mota de Melo, o fundador da
localidade.
A
data motivou a que daimistas de outros estados e países
comparecessem para participar de uma série de atividades
espirituais, culturais e até descerramento de uma
placa comemorativa. Todo este movimento porque, há
anos, o Céu do Mapiá passou a ser o principal
ponto de convergência de filiados, simpatizantes e
curiosos de todo o Brasil e de vários países
das Américas, Europa e Ásia em relação
a esta bebida preparada com dois vegetais amazônicos,
o cipó Jagube e a Folha Rainha também conhecida
como Chacrona e a Doutrina do Santo Daime, dela originária.
A
população da comunidade daimista atinge cerca
de mil habitantes, 600 na sede, situada no encontro das
águas dos igarapés Mapiá e Repartição,
200 nos sítios no entorno da vila e finalmente outros
200 ao longo do igarapé Mapiá.
O
curioso é que esta vila surgiu de um fato inusitado
na história contemporânea acreana e amazonense:
o impulso do Padrinho Sebastião - então líder
de uma comunidade daimista na Colônia Cinco Mil, situada
na estrada de Porto Acre, a cerca de 12 kms do centro de
Rio Branco - de fundar uma comunidade que vivesse de forma
comunitária e auto sustentável no meio da
floresta, já que a quantidade de terras que a comunidade
possuía no município de Rio Branco era pouca
para a execução do projeto e por outro lado
era cada vez maior o afluxo de gente em busca do Santo Daime.
Jornada épica começou em Rio do Ouro,
no Amazonas
Como
diz Chico Corrente, um dos mais antigos seguidores do padrinho
Sebastião, o Céu do Mapiá está
fazendo 20 anos, mas a jornada começou há
23 anos, quando em outubro de 1980, cerca de 100 pessoas
iniciaram a mudança para o Rio do Ouro, região
situada no município de Lábrea (AM).
Depois
de três anos de árdua luta e intensos sofrimentos,
os pioneiros conseguiram abrir centenas de estradas de seringa,
construir dezenas de casas, organizar a agricultura com
plantio de jardins e pomares, enfim, estabelecendo de maneira
admirável um assentamento em plena floresta.
Até
que um dia apareceu um dono das terras e o padrinho
Sebastião evitando entrar em conflito, aceitou a
mediação do Incra que sugeriu à comunidade
mudar-se para a região do Igarapé Mapiá,
então área devoluta e já desabitada
por mais de 15 anos.
Em
21 de janeiro de 1983, o Padrinho Sebastião estava
à frente da primeira canoa que aportou no local onde
foi iniciada a construção da vila, aliás,
ele foi o primeiro a saltar da canoa de terçado em
punho, limpando o primeiro mato do local, que se tornaria
um vibrante povoado poucos anos depois. Foi o recomeço
praticamente do zero, pois todo o trabalho feito no Rio
do Ouro foi abandonado sem que o pretenso proprietário
indenizasse a comunidade por qualquer uma das benfeitorias.
Depois
dessa viagem inicial, a comunidade iniciou sua efetiva instalação
e quase dois anos depois todos já haviam feito a
mudança para o Mapiá .O ponto de apoio no
abastecimento da comunidade passou a ser Boca do Acre, cidade
que entrou numa fase intensa de crescimento econômico
com o movimento provocado pela instalação
da comunidade e logo em seguida dos visitantes que começaram
a aparecer.
O grande líder Padrinho Sebastião
A
presença do padrinho no Céu do Mapiá
era fator de atração de pessoas de todas as
partes do planeta e depois de sua desencarnação
em 1990, o local tornou-se sagrado, destino de peregrinos.
O corpo do Padrinho foi enterrado próximo à
Igreja, tendo sido ali construída uma capela e, ao
lado desta, outra capela com os restos mortais de outro
grande líder, o Vô Corrente, tudo contribuindo
para estabelecer um clima místico, de grande significado
para a comunidade daimista.
Proveniente
do vale do Juruá, o Padrinho Sebastião conheceu
o Santo Daime através do Mestre Irineu Raimundo Serra,
o fundador da Doutrina, por volta de 1930. Ao procurar o
Mestre Irineu, em busca de cura para grave enfermidade,
Padrinho Sebastião obteve a cura, tornou-se seguidor
da Doutrina e passou a cumprir sua missão.
Depois
da desencarnação do Mestre Irineu, em 1971,
o Padrinho Sebastião desligou-se do Alto Santo, primeiro
centro de Daime e continuou o trabalho que iniciara anos
antes na Colônia Cinco Mil de forma independente.
Logo
juntou um grupo de pequenos agricultores das redondezas,
aos quais se juntaram moradores de Rio Branco ininciando-se
a vida comunitária que acabou repercutindo por todo
o Brasil e chegando aos quatro cantos do planeta.
Nos
últimos anos da década de 70, a Colônia
Cinco Mil viveu seu período, mais brilhante, onde
despontavam o Padrinho Sebastião com suas carinhosas
barbas brancas, a madrinha Rita, com sua bondade, os filhos
e futuros líderes cada vez mais firmes e um afinado
coro de seguidores, músicos e cantores.
Em
épocas especiais, como a noite de São João,
com visitantes de todos os quadrantes em meio ao simples
povo acreano, na presença daquela família
real, com o brilho e força do Santo Daime, a Colônia
Cinco Mil se transformava no centro do mundo
e sua luz brilhava intensamente. Em meio aos graves problemas
pelos quais passava o Brasil, ali se respirava a esperança
de que um novo tempo havia se iniciado sobre o solo terrestre.
O
nome do Daime, do Padrinho Sebastião e da Cinco Mil
viajaram pelo planeta, a comunidade tornou-se operosa e
eficiente. Muitos hinários floresceram, até
que chegou a década de 80 e veio a mudança
para o rio do Ouro e depois para o Céu do Mapiá.
Desenvolvimento não acabou com a vida comunitária
Inicialmente,
a vida comunitária no Céu do Mapiá
girava em torno da família do padrinho Sebastião,
dos trabalhos na Igreja, existia um sentimento muito forte
de comunidade, com trabalhos comunitários, paiol
comum, roçados comuns, uma cozinha geral que atendia
a todos os comunitários necessitados.
Começou
um processo de crescimento, mais pessoas convertidas ao
Santo Daime foram se instalando no Mapiá, e com desencarnação
do Padrinho Sebastião em 1990 o sistema comunitário
foi lentamente mudando como aumento da população.
Iniciou-se um regime de escambo nas relações
econômicas e ao mesmo tempo surgiu uma classe de pessoas
prestadoras de serviços de carpintaria, serraria,
motoristas de canoas, mais tarde voadeiras e um intenso
movimento surgiu entre a vila nascente e Boca do Acre.
Os
moradores iniciaram a abrir colônias interiorizando
a ocupação e ao mesmo tempo começaram
a adquirir os lotes de terras demarcados pelo Incra na região
do Baixo Mapiá de maneira que todo o igarapé
até sua foz (boca) está hoje ocupado por comunitários.
Mas,
eis que em 1989, quando repercutia intensamente a morte
de Chico Mendes e iniciavam os alarmes pelo desmatamento
desenfreado da floresta amazônica, toda uma imensa
área da região então ocupada pelo povo
do Padrinho Sebastião foi transformada em duas florestas
nacionais: a Flona do Mapiá/Inauini e a Flona do
Purus.
A
comunidade firmou um convênio com o IBDF, hoje Ibama,
para a realização de um inventário
e um plano de manejo para a região ficando a comunidade
credenciada a desenvolver um trabalho numa área de
530 000 ha, correspondentes às duas florestas nacionais.
Nada
de produtivo gerou o convênio principalmente porque
o Ibama nunca investiu nada ali até que expirou e
não se falou mais nisto até 1996 quando o
termo de cooperação foi renovado, mas, desta
vez, o Ibama só renovou em relação
à area da Flona Purus, esta por sua vez diminuída
em razão da implantação de uma área
indígena nas proximidades que tomou um pedaço
que acabou reduzindo a flona para cerca de 200 mil hectares.
O beija-flor voou, o tempo passou e tudo mudou
Em
janeiro de 1990, acontece a desencarnação
do Padrinho Sebastião, passando o comando da comunidade
passa para seu filho Alfredo Gregório de Melo. Nesta
época, iniciava a expansão internacional da
doutrina , que já javia sido precedida pela expansão
nacional na década de 80. Tudo isto contribuiu para
aumentar a população mapiaense, mudando radicalmente
o sistema econômico social interno, tipo socialista
cristão.
O
conceito de comunidade ficou mais realista dentro do novo
contexto, cada um procurando seu lugar, em meio à
diversidade, tendo como meta principal, o desenvolvimento
espiritual através de um calendário de atividades
doutrinárias, onde exercem importância fundamental
os Hinários e a bebida Santo Daime.
A
mistura do povo amazônida, sulistas e estrangeiros,
a chuva de culturas no dia a dia da comunidade criou um
relacionamento inimaginável mesmo para mentes férteis.
O sistema comunitário ficou então mais flexível,
o trabalho e o paiol comum foram substituídas pelas
trocas de mercadorias por trabalho e o dinheiro passou a
ser moeda de troca nas relações internas.
Surgiram
os primeiros armazéns de iniciativa particular, hoje
são cinco na vila, fortaleceu-se cada vez mais o
intercâmbio econômico com Boca do Acre e os
contatos políticos com Pauinim de maneira que o Céu
do Mapiá funciona hoje como se fosse um bairro de
Pauinim embora esteja situado a um dia de canoa (motor de
rabeta) e 8 horas de voadeira.
Hoje
o Céu do Mapiá modernizou-se. Tem telefone,
TV, parabólicas, conexão à internet,
guaraná e coca-cola, tem hospital, tem escola até
o ensino médio, de excelente nível, por sinal,
com professores altamente capacitados, mas o sentimento
comunitário primitivo permanece em alguns momentos
e lugares da vida comunitária, como é o caso
do mutirão todas as segundas-feiras na vila onde
a mão de obra existente trabalha comunitariamente
ajeitando a igreja, as ruas, os jardins, as praças
etc.
A
cozinha geral, depois de muito tempo desativada voltou,
foi implantada uma Santa Casa e a orientação
doutrinária proveniente dos trabalhos com o Santo
Daime apontam sempre para a necessidade de transformação
do homem, da prática da caridade e do restabelecimento
de relações justas e amorosas entre os seres
humanos, não permitindo assim que haja esmorecimento
no ideal do Padrinho Sebastião.
Sob
a batuta do Padrinho Alfredo, elevado à condição
de líder máximo da comunidade, o Céu
do Mapiá cresceu, a Doutrina chegou aos 4 cantos
do mundo, desde lugares distantes como os países
asiáticos, até os confins do Vale do Juruá,
embrenhando-se pela floresta amazônica, e sentindo
sob seus pés as erupções do fogo da
terra no Havaí.
Institucionalmente,
mudou muita coisa, separou-se as atividades da comunidade,
as religiosas ficariam ligadas à Igreja do Santo
Daime enquanto as demais atividades se concentrariam sob
a sigla IDA-Cefluris. A associação de moradores
ficou reforçada, desenvolveu-se a comunicação,
foi implantada uma rádio comunitária, e iniciou
a circulação de um jornal, a Folha do Céu.
Daimistas se esforçam na preservação
da natureza
Se
compararmos a qualidade de vida e a consciência ecológica
dos habitantes do Céu do Mapiá com outras
cidades e povoados da Amazônia a cidade fundada pelo
Padrinho Sebastião está na frente. Para começar,
tudo isto que narramos acima aconteceu num desmatamento
de pouco mais de 400 hectares em todo o Igarapé Mapiá,
computando-se aí as antigas colônias do Incra
que tem por lei o direito a desmatar 20% da área.
A
Floresta Nacional do Purus, no entanto, continua praticamente
intacta e a associação de moradores da Vila
Céu do Mapiá exerce a função
de guardiã, amparada pelo convênio com o Ibama.
No entanto, a comunidade espera ações mais
concretas de maneira a mapear as potencialidades da área
para que a floresta preservada possa gerar emprego e renda.
O
igarapé Mapiá, apesar de 20 anos de exploração,
continua com águas límpidas, podendo-se tomar
banho nele em pleno centro da vila. A conscientização
ambiental é constante e não se vê lixo
espalhado pela vila. O alumínio é recolhido
para reciclagem e estuda-se reciclagem local para papelão
e plástico. Domina-se a técnica de fiação
de lã e de algodão que, em caso de necessidade,
pode ser expandida rapidamente. Existe uma preocupação
constante de limpeza do igarapé, embora em suas partes
mais baixas se encontrem plásticos e latas jogadas
ao leito dágua.
Existe
produção local de remédios para quase
todas as enfermidades, grande parte deles baseadas em plantas
amazônicas, conhecimento adquirido após décadas
de contatos com índios e caboclos. Embora haja, ainda,
assistência médica alopática, a principal
novidade em saúde são os trabalhos de cura
espirituais.
Baseados
na certeza de que a doença na matéria é
um reflexo do estado do espírito, é bem variada
a gama de trabalhos espirituais visando a saúde em
um meio extremamente hostil devido a incidência de
doenças como malária, hepatite, leishmaniose,
hanseníase, etc.