Site do Centro de Documentação e Memória - ICEFLU - Patrono Sebastião Mota de Melo

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O Dia em que o "acre tornou-se mel"

 Introdução - por Alex Polari 


 Em início de dezembro de 1992, eu estava indo para o Acre numa grande caravana da nossa igreja (CEFLURIS) que iria se juntar as comemorações do centenário do Mestre Irineu. Tínhamos comprado um ônibus para ir trazendo o povo em duas viagens. Quando estava chegando em Rio Branco, cheio de emoções e expectativas, uma melodia começou a martelar minha cabeça. Eu comecei a solfejar e comecei a receber um hino, alusivo ao Centenário. Em uma das estrofes ele dizia:

"Quando o Mestre veio a terra
O Acre tornou-se mel
Raimundo Irineu Serra
É um cruzeiro no céu"

É mais ou menos esta a síntese espiritual deste grande acontecimento. A encarnação deste homem simples, manso (nem sempre foi assim, como registram alguns episódios da mocidade do mestre), natural do Maranhão e sua chegada no Acre, onde veio de longe encontrar o seu destino e a sua missão, transformou aquele antigo território meio esquecido de algo acre, travoso, em um puro néctar. Suas florestas preservadas, se tornaram o berço de uma espécie de maná espiritual para os tempos de hoje.

Uma sensação de algo muito marcante aconteceu ali. E que todos nós, acreanos, brasileiros (e hoje em dia estrangeiros de todo globo), que entendem o valor desta doutrina espiritual, têm motivos, apesar de suas diferenças de nuances, de se sentirem honrados com o papel que Raimundo Irineu Serra  assumiu no panteão universal dos grandes mestres e avatares destes últimos dois séculos. O que está bem representado na Constelação do Cruzeiro , um dos símbolos maiores desta doutrina e o nome do seu Hinário.

Mas como sempre acontece na História dita dos homens, a posteridade  reconhece melhor seus filhos diletos, que quase sempre passam desapercebidos ante aos olhos dos contemporâneos. É sempre preciso uma certa distância no tempo e um olhar retrospectivo, para atinarmos com a importância da trajetória de um grande homem. E principalmente por que este grande se faz quase sempre através de pequenos atos, escolhas, enfrentamentos. Grandes personagens espirituais não precisam ser intempestivos nem heroicos. Nem ter seu peso fundido no bronze das estátuas, como generais e estadistas, tanto mais famosos quanto os cadáveres e as conquistas deixadas atrás de si. Eles são sempre  bondosos, altruístas e se preocupam  pelo bem estar e a felicidade dos outros. O que confere grandeza a estes verdadeiros guias e instrutores da humanidade é a sua humildade. Eles foram como nossos avós, nossos pais. Em certa medida eles são como nós. Por isso nos encantam e o exemplo deles nos cala tão fundo.

Para entender melhor o alcance e a profundidade da doutrina codificada pelo Mestre Raimundo Irineu Serra, temos que levar em conta as ideias e ensinos espirituais que ele teve acesso durante a sua vida e anos de formação. Pois mesmo que as revelações dos grandes mestres sempre estejam acima do seu próprio tempo, a  sua formulação como algo realmente inovador, depende em grande parte de uma maturação e recombinação de  elementos já existentes. Em algum momento há um salto de qualidade, uma reconfiguração , um novo desenvolvimento , uma  nova síntese realmente original e que irá responder a um novo tipo de necessidade de demanda espiritual. Depois de muitas tentativas, uma partícula de ouro aparece no crisol do alquimista.

O ponto central desta narrativa é o encontro deste homem Raimundo Irineu Serra, com uma das tradições sagradas mais antigas dos povos nativos da Amazônia Ocidental, a ayahuasca. O que aconteceu deste encontro e as consequências que ele acarretou e continua acarretando para nós, quase 100 anos depois. Foi o encontro entre um homem simples, filho de ex-escravos com xamãs e pajés caboclos E através dele, foi também o encontro entre a religião católica e popular com a magia e o mistério das plantas psicoativas usadas desde tempos imemoriais por nossos ancestrais para finalidades religiosas.

A história da ayahuasca e destas outras plantas já eram relatadas desde o início da colonização europeia. A Igreja, força dominante ao lado da nobreza e do capital mercantil sempre estava em guarda contra elas, suspeitas que sempre foram de heresias e bruxarias poderosas.

Porém couberam aos botânicos, exploradores, antropólogos  e aventureiros do século XIX, a “descoberta” e um conhecimento mais direto da importância do seu uso em muitas culturas da região amazônica.

Entre as diversas plantas que fazem parte deste Olimpo de divindades tropicais, sem dúvida a ayahuasca é uma das mais importantes. Preparada a partir da cocção de uma melpigaceae, o cipó banisteriopsis caapi e de um arbusto do gênero das rubiaceae, chamado de psicotya viridis, teve a sua difusão ampliada a partir do começo do século XX, com a assimilação da pajelança indígena e do xamanismo caboclo pelas  sucessivas levas de migrantes nordestinos iam ocupando o interior da selva em busca da exploração do látex. Com o tempo, as diversas utilizações do cipó se tornaram recursos da farmacopeia popular das populações mestiçadas.

Em um  outro nível, tornou-se um “trabalho,” acessível através dos diversos curandeiros, detentores das fórmulas de seu preparo e  indicações quanto `a sua utilização. A julgar pela maneira tradicional ainda hoje preservada em certas tribos, a bebida sempre foi usada para o caso de doenças, possessões malignas, sendo também ministrada para curar a “panema”, facilitar os recursos da caça, ver a distância, adivinhar ataques espirituais encomendados a outros feiticeiros, etc.

Coube a Raimundo Irineu iniciar este resgate do Cristianismo primitivo através das lentes da ayahuasca. Que por ironia do destino vinha a ser o sacramento dos povos subjugados pela Cristianização forçada levada a cabo pela empresa colonialista e mercantil Europeia associada `a conquista das Américas. Sem sombra de dúvida, uma façanha prodigiosa, tanto cultural quanto espiritualmente.

--Alex Polari