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Reportagem da National Geographic no Céu do Mapiá

Por Daniel Nunes Gonçalves, com fotos de Andréa D'Amato. Matéria publicada na edição n. 87 da Revista National Geographic, de 01/06/2007.

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céu do mapiá - national geographic

"Aceita o sacramento?" Quando o rapaz me faz a pergunta, logo no dia em que chego ao Céu do Mapiá, agradeço, mas não aceito. A oferta era tentadora, mas preferi entender antes o território onde estava pisando. Eu havia desembarcado a tempo de acompanhar o único ritual do ano em que os fiéis do Santo Daime, uma religião criada no Brasil, consomem sua bebida sagrada, um chá de plantas nativas, na própria floresta - e não dentro da igreja -, caminhando na companhia do maior guru daquele grupo, o "Padrinho" Alfredo Gregório de Melo. Havia um arco-íris sobre nossa cabeça e o Sol dançava na forma de feixes de luz entre a copa de árvores de 30 metros de altura. Numa clareira, uma centena de pessoas entoava canções repetitivas, mantras ao som de uma orquestra rústica com violas caipiras, flautas e tambores.

Distrito do município de Pauini, a terra prometida dos daimistas é um refúgio natural escondido e distante, nos confins do sudoeste do Amazonas. Nasceu como uma pequena sociedade alternativa, em 1983, e ainda mantém sua aura de ashram amazônico, aberto para receber buscadores espirituais de todo o mundo. Para os daimistas, estar no "céu", na mata onde brota seu sacramento vegetal, é uma oportunidade única. "Essa é a nossa meca, um lugar em que sonhamos pisar ao menos uma vez na vida", definiu Sally Gliddon, 25 anos, uma inglesa com quem conversei logo depois da cerimônia.

ceu do mapia

Mapienses e visitantes compartilham da mesma rotina em torno do plantio, da colheita, do preparo e do consumo da ayahuasca ("vinho das almas", em quíchua, a língua dos incas peruanos). O chá que eu recusara é feito da mistura de duas plantas, as folhas de chacrona (Psychotria viridis) e o cipó jagube (Banisteriopsis caapi), integrantes de um restrito grupo de vegetais descritos como alucinógenos ou enteógenos (que proporcionam a sensação de contato com o divino). Quando misturadas e ingeridas, as plantas atuam no sistema nervoso central, provocando efeitos comparáveis aos do cogumelo e do cacto peiote (Lophophora williamsiii, popularizado pelo escritor Carlos Castañeda em obras como A Erva do Diabo). O alcalóide dimetiltriptamina (DMT) presente nas folhas da chacrona aumenta os níveis de serotonina do cérebro, proporcionando o êxtase - e, segundo os usuários, a cura, o autoconhecimento, o encontro com Deus.

Daime, o santo, nunca existiu. O nome da doutrina foi criado com base nas repetidas invocações de "dai-me luz, dai-me força e dai-me amor!" feitas pelo seu criador, Raimundo Irineu Serra. Esse negro maranhense migrou, na década de 1930, para trabalhar nos férteis seringais do Acre e ali conheceu a ayahuasca com um xamã peruano - os pajés indígenas e seus pacientes consomem ayahuasca há séculos em seus rituais. Em suas experiências com o chá, "Mestre" Irineu recebeu inspiração para fundar essa corrente espiritual que mistura influências do cristianismo popular, do espiritualismo kardecista, das religiões afro-brasileiras e do xamanismo indígena. Sua igreja prosperou e originou várias correntes: a que mais se expandiu foi a comandada pelo amazonense Sebastião Mota de Melo, discípulo de Irineu, idealizador do Céu do Mapiá. Oficialmente chamado de Centro Eclético da Fluente Luz Universal (Cefluris), o segmento sebastiano tem Mapiá como uma espécie de capital dos 80 núcleos espalhados pelo Brasil e em outros 20 países, totalizando mais de 4 mil filiados.

A cidadela à beira-rio abriga por volta de 600 moradores, entre caboclos amazônicos e forasteiros convertidos. No Céu do Mapiá, o tempo é outro. Literalmente. A primeira atitude de todos os visitantes - que precisam ter sua viagem aprovada pelos líderes da comunidade - é acertar os relógios conforme a hora local: uma hora e meia a menos que o horário nacional. Quando, por exemplo, são 20 horas em Brasília, Mapiá ainda vive às 18h30. Por inspiração do Padrinho Sebastião Mota - falecido em 1990 e pai do atual líder, o Padrinho Alfredo -, a diferença não é nem de uma hora, como em Manaus, capital do Amazonas, e tampouco de duas horas, como no vizinho estado do Acre. Os "trabalhos" espirituais são bem mais extensos que as missas cristãs. As cerimônias, que ocorrem em média quatro vezes ao mês, duram cerca de seis horas, mas podem demorar 12, atravessando dias ou noites inteiras, enquanto são provadas várias doses da bebida marrom, espessa e amarga.

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Na Festa de Reis, em janeiro, dias depois da minha chegada, bastou o Sol se pôr para que a maior parte da população se dirigisse à catedral, uma construção de madeira em formato de estrela erguida no alto de um pequeno morro, diante do centrinho de casebres e jardins bem cuidados. Debaixo dos braços, levavam os hinários, livros que contêm os ensinamentos da religião em forma de cânticos, que seriam entoados, madrugada adentro, no ritmo de um bailado circular. Os homens ocupavam metade da igreja, vestindo o uniforme apropriado àquela cerimônia: terno e sapato brancos com gravata azul. Já as mulheres usavam vestido branco e verde, além de coroa prateada sobre o cabelo longo. Lembravam fadinhas de uma floresta encantada.

Quando o trabalho acabou, pela manhã, a comunidade foi retomando sua rotina. Os lugares onde o dinheiro circula abriram suas portas: a padaria O Pão Nosso de Cada Dia, a única pousada, os três armazéns, a loja de artigos religiosos. As crianças, acostumadas a tomar o chá desde a barriga de suas mães, só não foram para a escola Cruzeiro do Céu, única da vila e com classes até a 7a série, por ser período de férias. Algumas mulheres rumaram para as plantações de chacrona para colher, e depois limpar, folha por folha, sua planta sagrada. Os homens, quando não seguiram para seus roçados caseiros, foram cortar o jagube na mata. No dia seguinte, o material colhido por eles seria processado em uma cerimônia impressionante, chamada de "feitio". As vozes graves de um coro masculino embalam, entre uma dose e outra do chá, a dura missão de macetar os pedaços do cipó a marteladas. Cipó e folha são então misturados em panelas imensas e fervidos em fornalhas, ao longo de horas, pelos "homens do fogo".

A rotina religiosa faz do Mapiá um refúgio de paz. A proibição da venda de álcool é respeitada. Segunda-feira é dia de mutirão. Não há posto de polícia, oficial de justiça nem mesmo hospital (embora a malária seja um fantasma freqüente para os moradores). A maior parte das doenças é tratada com homeopatia e terapias holísticas num espaço chamado de "Santa Casa", com medicamentos naturais retirados do Centro Medicina da Floresta, referência nacional em pesquisas da botânica amazônica. Sob o comando informal da família Melo e da Associação de Moradores, a administração funciona bem e de forma peculiar. A área de extração das plantas sagradas acontece dentro da Floresta Nacional do Purus, com 250 mil hectares, que abriga a comunidade e seu entorno desde 1988. Isso torna o Céu do Mapiá uma experiência socioambiental única, gerida por um plano de manejo que, feito com apoio da ONG WWF - Fundo Mundial para a Natureza, reconhece que naquela área protegida acontece a exploração de um patrimônio etnobotânico ancestral que atrai adeptos à floresta. Por isso, a presença humana ali não é exortada. "O Céu do Mapiá é um oásis de saúde e educação em meio às comunidades carentes da Amazônia", diz a antropóloga Beatriz Labate, que já esteve três vezes no lugar e listou, recentemente, nada menos que 426 estudos acadêmicos, em dez línguas, já feitos sobre o universo do chá.

O progresso, no entanto, ameaça transformar o shangrilá daimista em um centro urbano comum. A recente construção de uma estrada de terra que liga Boca do Acre a um sítio próximo à comunidade minimizou o martírio do transporte fluvial durante o período da seca - em contrapartida, levou os primeiros carros à vila. Algo inimaginável há dez anos, quando por ali não havia tampouco televisão, telefone e internet sem fio. "No tempo do papai, aqui não circulava nem dinheiro", lembra, com algum saudosismo, o carismático Padrinho Alfredo, 57 anos. "No início eu era até contra a televisão, mas os jovens queriam tanto assistir à Copa do Mundo de Futebol que acabei me rendendo", conta ele, depois de passarmos pela sala principal de sua casa, a maior da vila, onde umas 15 pessoas se aglomeravam para assistir à novela das 8.

A vocação espiritual do lugarejo, no entanto, se mantém. "Busquei a religião para cuidar de uma doença física, uma hérnia, e descobri que o Santo Daime serve para curar o espírito", define Ilma Gadelha de Oliveira, 64 anos, que se mudou de Xapuri, no Acre, para o Mapiá no grupo dos pioneiros, há 24 anos. Sobrinha de Ilzamara, a viúva de Chico Mendes, o mártir dos defensores da Amazônia, dona Ilma é uma nativa da floresta que compõe um variadíssimo painel de seguidores da doutrina. Entre os que conheci, havia um austríaco que descobriu ali sua mediunidade para incorporar o espírito de um caboclo, um nativo que encheu quatro passaportes com vistos de suas viagens como músico para difundir a doutrina, e vários fiéis que tinham encontrado no chá a salvação contra a depressão e a dependência química. "Mal posso acreditar que, há apenas um ano e meio, eu estava fervendo nas discotecas de Ibiza", conta a colombiana Tania Ramirez, 34 anos, piercing na língua e rosto pintado de urucum, que diariamente atualiza um blog direto do seu casebre na floresta.

Apesar da freqüência de gente com o perfil de Tania, o Mapiá está longe de ser um esconderijo de neo-hippies que passaram a substituir as drogas por um chá que dá barato. Traduzir a experiência em poucas palavras, e com a prova de um só indivíduo, seria reducionismo. Mas posso dizer que houve algum sofrimento nos três "trabalhos" de que participei. Tive de correr ao banheiro e vomitar em vários momentos - a rejeição à intoxicação provocada pelo chá é corriqueira. Só à medida que diminuíram o mal-estar físico, a minha resistência ao ritual cansativo do Santo Daime e o medo do invisível, pude finalmente experimentar sentimentos comuns aos de outros fiéis, como o êxtase de se perceber conectado ao "espírito" da ayahuasca. Quando fechava os olhos, vinham em minha mente insights sobre minha existência e as mirações, visões semelhantes a sonhos - e que pareciam misteriosamente verdadeiras. Eu enxergava a natureza como a prova mais bela e misteriosa da existência de um deus e respeitava aquele momento, aquele lugar e aquele grupo como algo sagrado. Não me converti. Mas o saldo de todos aqueles pensamentos desencontrados foi a sensação, percebida durante a viagem de volta, de que algo havia mudado no meu jeito de ver a vida.


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