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"Aceita o sacramento?" Quando o rapaz me faz a pergunta, logo no dia em
que chego ao Céu do Mapiá, agradeço,
mas não aceito. A oferta era tentadora, mas preferi entender
antes o território onde estava pisando. Eu havia
desembarcado a tempo de acompanhar o único ritual do ano em
que os fiéis do Santo Daime, uma religião criada
no Brasil, consomem sua bebida sagrada, um chá de plantas
nativas, na própria floresta - e não dentro da
igreja -, caminhando na companhia do maior guru daquele grupo, o
"Padrinho" Alfredo Gregório de Melo. Havia um
arco-íris sobre nossa cabeça e o Sol
dançava na forma de feixes de luz entre a copa de
árvores de 30 metros de altura. Numa clareira, uma centena
de pessoas entoava canções repetitivas, mantras
ao som de uma orquestra rústica com violas caipiras, flautas
e tambores.
Distrito do município de Pauini, a terra prometida dos
daimistas é um refúgio natural escondido e
distante, nos confins do sudoeste do Amazonas. Nasceu como uma pequena
sociedade alternativa, em 1983, e ainda mantém sua aura de
ashram amazônico, aberto para receber buscadores espirituais
de todo o mundo. Para os daimistas, estar no "céu", na mata
onde brota seu sacramento vegetal, é uma oportunidade
única. "Essa é a nossa meca, um lugar em que
sonhamos pisar ao menos uma vez na vida", definiu Sally Gliddon, 25
anos, uma inglesa com quem conversei logo depois da cerimônia.
Mapienses e visitantes compartilham da mesma rotina em torno do
plantio, da colheita, do preparo e do consumo da ayahuasca ("vinho das
almas", em quíchua, a língua dos incas peruanos).
O chá que eu recusara é feito da mistura de duas
plantas, as folhas de chacrona (Psychotria viridis) e o cipó
jagube (Banisteriopsis caapi), integrantes de um restrito grupo de
vegetais descritos como alucinógenos ou
enteógenos (que proporcionam a
sensação de contato com o divino). Quando
misturadas e ingeridas, as plantas atuam no sistema nervoso central,
provocando efeitos comparáveis aos do cogumelo e do cacto
peiote (Lophophora williamsiii, popularizado pelo escritor Carlos
Castañeda em obras como A Erva do Diabo). O
alcalóide dimetiltriptamina (DMT) presente nas folhas da
chacrona aumenta os níveis de serotonina do
cérebro, proporcionando o êxtase - e, segundo os
usuários, a cura, o autoconhecimento, o encontro com Deus.
Daime, o santo, nunca existiu. O nome da doutrina foi criado com base
nas repetidas invocações de "dai-me luz, dai-me
força e dai-me amor!" feitas pelo seu criador, Raimundo
Irineu Serra. Esse negro maranhense migrou, na década de
1930, para trabalhar nos férteis seringais do Acre e ali
conheceu a ayahuasca com um xamã peruano - os
pajés indígenas e seus pacientes consomem
ayahuasca há séculos em seus rituais. Em suas
experiências com o chá, "Mestre" Irineu recebeu
inspiração para fundar essa corrente espiritual
que mistura influências do cristianismo popular, do
espiritualismo kardecista, das religiões afro-brasileiras e
do xamanismo indígena. Sua igreja prosperou e originou
várias correntes: a que mais se expandiu foi a comandada
pelo amazonense Sebastião Mota de Melo, discípulo
de Irineu, idealizador do Céu do Mapiá.
Oficialmente chamado de Centro Eclético da Fluente Luz
Universal (Cefluris), o segmento sebastiano tem Mapiá como
uma espécie de capital dos 80 núcleos espalhados
pelo Brasil e em outros 20 países, totalizando mais de 4 mil
filiados.
A cidadela à beira-rio abriga por volta de 600 moradores,
entre caboclos amazônicos e forasteiros convertidos. No
Céu do Mapiá, o tempo é outro.
Literalmente. A primeira atitude de todos os visitantes - que precisam
ter sua viagem aprovada pelos líderes da comunidade -
é acertar os relógios conforme a hora local: uma
hora e meia a menos que o horário nacional. Quando, por
exemplo, são 20 horas em Brasília,
Mapiá ainda vive às 18h30. Por
inspiração do Padrinho Sebastião Mota
- falecido em 1990 e pai do atual líder, o Padrinho Alfredo
-, a diferença não é nem de uma hora,
como em Manaus, capital do Amazonas, e tampouco de duas horas, como no
vizinho estado do Acre. Os "trabalhos" espirituais são bem
mais extensos que as missas cristãs. As
cerimônias, que ocorrem em média quatro vezes ao
mês, duram cerca de seis horas, mas podem demorar 12,
atravessando dias ou noites inteiras, enquanto são provadas
várias doses da bebida marrom, espessa e amarga.
Na Festa de Reis, em janeiro, dias depois da minha chegada, bastou o
Sol se pôr para que a maior parte da
população se dirigisse à catedral, uma
construção de madeira em formato de estrela
erguida no alto de um pequeno morro, diante do centrinho de casebres e
jardins bem cuidados. Debaixo dos braços, levavam os
hinários, livros que contêm os ensinamentos da
religião em forma de cânticos, que seriam
entoados, madrugada adentro, no ritmo de um bailado circular. Os homens
ocupavam metade da igreja, vestindo o uniforme apropriado
àquela cerimônia: terno e sapato brancos com
gravata azul. Já as mulheres usavam vestido branco e verde,
além de coroa prateada sobre o cabelo longo. Lembravam
fadinhas de uma floresta encantada.
Quando o trabalho acabou, pela manhã, a comunidade foi
retomando sua rotina. Os lugares onde o dinheiro circula abriram suas
portas: a padaria O Pão Nosso de Cada Dia, a
única pousada, os três armazéns, a loja
de artigos religiosos. As crianças, acostumadas a tomar o
chá desde a barriga de suas mães, só
não foram para a escola Cruzeiro do Céu,
única da vila e com classes até a 7a
série, por ser período de férias.
Algumas mulheres rumaram para as plantações de
chacrona para colher, e depois limpar, folha por folha, sua planta
sagrada. Os homens, quando não seguiram para seus
roçados caseiros, foram cortar o jagube na mata. No dia
seguinte, o material colhido por eles seria processado em uma
cerimônia impressionante, chamada de "feitio". As vozes
graves de um coro masculino embalam, entre uma dose e outra do
chá, a dura missão de macetar os
pedaços do cipó a marteladas. Cipó e
folha são então misturados em panelas imensas e
fervidos em fornalhas, ao longo de horas, pelos "homens do fogo".
A rotina religiosa faz do Mapiá um refúgio de
paz. A proibição da venda de álcool
é respeitada. Segunda-feira é dia de
mutirão. Não há posto de
polícia, oficial de justiça nem mesmo hospital
(embora a malária seja um fantasma freqüente para
os moradores). A maior parte das doenças é
tratada com homeopatia e terapias holísticas num
espaço chamado de "Santa Casa", com medicamentos naturais
retirados do Centro Medicina da Floresta, referência nacional
em pesquisas da botânica amazônica. Sob o comando
informal da família Melo e da
Associação de Moradores, a
administração funciona bem e de forma peculiar. A
área de extração das plantas sagradas
acontece dentro da Floresta Nacional do Purus, com 250 mil hectares,
que abriga a comunidade e seu entorno desde 1988. Isso torna o
Céu do Mapiá uma experiência
socioambiental única, gerida por um plano de manejo que,
feito com apoio da ONG WWF - Fundo Mundial para a Natureza, reconhece
que naquela área protegida acontece a
exploração de um patrimônio
etnobotânico ancestral que atrai adeptos à
floresta. Por isso, a presença humana ali não
é exortada. "O Céu do Mapiá
é um oásis de saúde e
educação em meio às comunidades
carentes da Amazônia", diz a antropóloga Beatriz
Labate, que já esteve três vezes no lugar e
listou, recentemente, nada menos que 426 estudos acadêmicos,
em dez línguas, já feitos sobre o universo do
chá.
O progresso, no entanto, ameaça transformar o
shangrilá daimista em um centro urbano comum. A recente
construção de uma estrada de terra que liga Boca
do Acre a um sítio próximo à
comunidade minimizou o martírio do transporte fluvial
durante o período da seca - em contrapartida, levou os
primeiros carros à vila. Algo inimaginável
há dez anos, quando por ali não havia tampouco
televisão, telefone e internet sem fio. "No tempo do papai,
aqui não circulava nem dinheiro", lembra, com algum
saudosismo, o carismático Padrinho Alfredo, 57 anos. "No
início eu era até contra a televisão,
mas os jovens queriam tanto assistir à Copa do Mundo de
Futebol que acabei me rendendo", conta ele, depois de passarmos pela
sala principal de sua casa, a maior da vila, onde umas 15 pessoas se
aglomeravam para assistir à novela das 8.
A vocação espiritual do lugarejo, no entanto, se
mantém. "Busquei a religião para cuidar de uma
doença física, uma hérnia, e descobri
que o Santo Daime serve para curar o espírito", define Ilma
Gadelha de Oliveira, 64 anos, que se mudou de Xapuri, no Acre, para o
Mapiá no grupo dos pioneiros, há 24 anos.
Sobrinha de Ilzamara, a viúva de Chico Mendes, o
mártir dos defensores da Amazônia, dona Ilma
é uma nativa da floresta que compõe um
variadíssimo painel de seguidores da doutrina. Entre os que
conheci, havia um austríaco que descobriu ali sua
mediunidade para incorporar o espírito de um caboclo, um
nativo que encheu quatro passaportes com vistos de suas viagens como
músico para difundir a doutrina, e vários
fiéis que tinham encontrado no chá a
salvação contra a depressão e a
dependência química. "Mal posso acreditar que,
há apenas um ano e meio, eu estava fervendo nas discotecas
de Ibiza", conta a colombiana Tania Ramirez, 34 anos, piercing na
língua e rosto pintado de urucum, que diariamente atualiza
um blog direto do seu casebre na floresta.
Apesar da freqüência de gente com o perfil de Tania,
o Mapiá está longe de ser um esconderijo de
neo-hippies que passaram a substituir as drogas por um chá
que dá barato. Traduzir a experiência em poucas
palavras, e com a prova de um só indivíduo, seria
reducionismo. Mas posso dizer que houve algum sofrimento nos
três "trabalhos" de que participei. Tive de correr ao
banheiro e vomitar em vários momentos - a
rejeição à
intoxicação provocada pelo chá
é corriqueira. Só à medida que
diminuíram o mal-estar físico, a minha
resistência ao ritual cansativo do Santo Daime e o medo do
invisível, pude finalmente experimentar sentimentos comuns
aos de outros fiéis, como o êxtase de se perceber
conectado ao "espírito" da ayahuasca. Quando fechava os
olhos, vinham em minha mente insights sobre minha existência
e as mirações, visões semelhantes a
sonhos - e que pareciam misteriosamente verdadeiras. Eu enxergava a
natureza como a prova mais bela e misteriosa da existência de
um deus e respeitava aquele momento, aquele lugar e aquele grupo como
algo sagrado. Não me converti. Mas o saldo de todos aqueles
pensamentos desencontrados foi a sensação,
percebida durante a viagem de volta, de que algo havia mudado no meu
jeito de ver a vida.
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