Existem no Acre, um grande número de centros
religiosos que utilizam o Daime. O Daime, ou Iagê, ou Cipó, é uma bebida preparada a
partir de uma determinada espécie de folhas e um cipó, existentes na Amazônia
Ocidental. Com o intuito de levantar as bases para um posterior estudo da doutrina do
Santo Daime, VARADOURO colheu alguns depoimentos de pessoas que vivem a realidade do Santo
Daime bem de perto. O interesse pela doutrina do Santo Daime, iniciada no Acre com
Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, tem atravessado as fronteiras do Acre e atraído a
curiosidade de gente de muitas partes do Brasil, com também de outros países. Muitos
artigos já foram escritos, mas normalmente por pessoas alheias à realidade da doutrina,
por isto sempre ficam a desejar. Como toda esta tradição tem raízes populares, nasceu
com gente muito simples, ela esteve por muito tempo envolta num véu de preconceito que
agora vem se dissipando. Nosso primeiro contato foi com o "conselheiro" José
das Neves, acreano do Município do Xapuri, padeiro de profissão e amigo íntimo do
Mestre Irineu. José das Neves, está com 73 anos de idade, 40 dos quais vividos ao lado
do Mestre Irineu.
VARADOURO - Como o Sr. conheceu o Mestre Irineu?
José das Neves Ei tinha a idade de 4 anos
quando ele passou por Xapuri, depois ele foi para os seringais em Brasiléia e na Bolívia
e ficou muito tempo por lá. Mas ficou em mim este conhecimento gravado, ainda que tivesse
tão pouca idade. Em fevereiro de 1930 com 22 anos de idade me transferi para Rio Branco.
Eu cheguei em fevereiro e o Mestre Irineu chegou em março. Quando chegou maio ele
começou o trabalho dele aqui, nessa época ele já tinha 39 anos.
Varadouro Como o Sr. se encontrou com Irineu?
Foi convidado por ele?
José das Neves Tinha um cidadão que
conhecia ele e trabalhava comigo e me disse que Irineu tinha chegado e coisa e tal. Então
a razão é que eu procurava este conhecimento. E nesta razão de conhecimento pude
alcançar o trabalho. Ele não me convidou, foi tática minha chegar e tomar o Daime mais
ele. Aliás ele nunca convidou ninguém. Eu também nunca convidei ninguém, quem quer
vai.
Varadouro Então em maio do ano passado
completaram 50 anos que se toma Daime em Rio Branco. Como foi a Cerimônia?
José das Neves: Foi no dia 26 de maio de 1930 que
comecei este trabalho com ele, e trabalhamos até o falecimento dele, 41 anos e 41 dias.
Naquele tempo não havia farda e este trabalho foi de concentração. Éramos três
pessoas. Já faz muito tempo. Não me lembro o nome do outro companheiro. Em 50 anos tem
muito declínio.
Varadouro: Fale mais sobre o começo:
José das Neves: O nosso trabalho começou como uma
aula. Ajunta 4 ou 5 meninos, faz uma sala e vai ensinado e vai chegando mais crianças,
chega um ponto que tem 50 ou 100 alunos. Vai afinando, vai purificando os ensinos cada dia
que passa. O professor vai indicando como é, o aluno vai aprendendo a carta do ABC.
Naquele tempo era o começo de tudo. De 1935 à 1940 é que o Mestre vai desenvolvendo e
recebendo os valores da doutrina, os hinos, a música que vem do astral e não tem nada de
inventado.
Varadouro: Uma escola sempre forma os alunos,
deixando-os aptos. O Mestre Irineu formou muita gente?
José das Neves: Bom, teve muitos alunos, muito mais
de mil, mas nem todos se esforçam para aprender igual. Tem muitos casos de gente que
levou a sério, eu vou citar um: Maria Damião foi uma aluna que trabalhou uns
tantos anos com o Mestre. Faleceu em 1949, mas aprendeu e recebeu um hinário e por isto
será uma pessoa sempre viva dentro da doutrina.
Varadouro: O Sr. também recebe hinário?
José das Neves: Não o meu trabalho é de
"Concentração". Eu sou Conselheiro do Alto Santo. Vem uma pessoa com um
problema e conforme seu merecer eu dou os conselhos.
Varadouro: O Sr. também faz trabalhos de cura?
José das Neves: O Mestre Irineu fazia trabalhos de
cura. Ele tinha este poder e uma boa parte das pessoas que se iniciaram na doutrina foi
porque lá receberam sua saúde. Agora quem cura é o Daime, mas precisa da força do
Mestre. Não havia antes de nós este trabalho em Rio Branco. Era uma segredo da mata. O
Mestre Irineu abriu o conhecimento para outras pessoas a até chegar na situação que
está hoje.
Varadouro: E vocês nunca tiveram problemas com a
lei?
José das Neves: O Mestre Irineu era muito
respeitado e foi amigo de políticos influentes que o procuravam em sua casa. Mas tivemos
problemas quando inventaram o negócio de "tóxico". Agora se você quer saber
se esta bebida é pura e sólida eu vou dizer que estou trabalhando há 50 anos com ela.
Aí se me perguntarem: cidadão ficou alguma parte tóxica? - Eu digo não. O delegado da
Polícia Federal me falou assim Como é? Pela sua pessoa não pode ser tóxico
nunca. O Sr. com esta idade, com este corpo e na sua voz não há manqueira. Então não
há razão para ser tóxica.
Varadouro: E sua esposa? Sempre lhe favoreceu neste
trabalho?
José das Neves: Já está dentro dos 40 anos que
nós vivemos juntos e nestas partes ela nunca botou dúvida, porque ela também vem
tomando Daime nesses anos todos. Agora me diga uma coisa, quantos anos tu achas que ela
tem? - Bem, eu calculo uns 68 anos Tá vendo como são as coisas, está ai uma
mulher que dá conta do serviço todo da casa e está boa para tudo. Ela é oito anos mais
velha do que eu portanto já está dentro dos 80 anos.
Varadouro: Eu acredito num casal que viveu tantos
anos juntos: para chegar a uma velhice saudável precisou ter muita harmonia no decurso da
vida. Foi este o caso de vocês?
Dona Ester: No começo ele era um pouco bruto, mas
no passar do tempo foi melhorando.
José das Neves: Mas no começo era ssim, tá vendo
este tamborete? Eu dizia isto aqui é um tamborete. Ela dizia não, é um banco, aí vinha
discussão. Até que um dia o Daime me pegou e me mostrou que daquele jeito não dava.
Então se chegasse em casa e dissesse que era um banco eu me calava, mas ficava firme com
minha verdade e ela com a dela. E o resultado qual foi? Fortaleceu minha palavra e a dela
e nós fomos deixando de discutir sem precisão.
Varadouro: O Daime vem da mata e a mata está
acabando por aqui, como vai ser?
José das Neves: Se acabar coma mata, com a
floresta, pode acabar com a humanidade. Pode acabar cm todo ser vivente, porque nos
vivemos pela floresta e a floresta por nós. Se terminar com a floresta, então pode
terminar com a humanidade que não vale mais nada. Sabe porque? - A floresta nos dã vida
e a vida sopra de lá e cobre o mundo.
Varadouro: E os índios?